sábado, 24 de outubro de 2009


Uma aura azul predomina na Esquina.
Um aroma de magia - você deve conhecer - começou a chegar a meus pulmões.
Através da aura percebo surgir uma figura, caminhando em minha direção. Aos poucos distingo ser um bobo da corte. Alto. Com uma linda roupa dourada. A face toda branca com detalhes dourados e aquele chapéu com bolas que todo bobo carrega consigo.
Trazia nas mãos uma linda bola daquelas grandes e coloridas. Segurava-a com muito cuidado. Às vezes a acariciava. Tinha muita estima pela bola.
Sentou-se ao chão, cruzou as pernas e ficou a contemplar a bola. Sorria. Contemplava.
A bola passou a espagir-se. Espargiu, espargiu até que expluiu!
BUM!
Retalhos coloridos espalharam-se pelo ar e ficaram a flutuar.
A bola revelou ter em seu interior um lampião. Apagado.
Ao contemplar aquele lampião o bobo levantou!
Lançou um olhar aflito.
Passou a correr em torno do lampião.
Correu muito.
Parou. Descansou.
Voltou a correr.
Estava nessa corrida quando entre os retalhos coloridos que ainda flutuavam, surgiu um homem. Seus olhos encontravam-se vendados. Vestia uma longa bata preta e carregava na mão esquerda um singelo baú.
- Alguém pode me ajudar? - disse o homem.
- Me diz nobre senhor do que necessitas.
- Esse baú precisa se abrir. E para isso preciso encontrar o bobo da corte.
- Infelizmente não posso te ajudar. Não sei da existência de nenhum bobo aqui nas redondezas. Mas veja bem, eu carregava uma bola que desistiu de existir e mostrou carregar em seu interior um lampião apagado.
- Um lampião? O que seria um lampião?
- Não sei te explicar. Um lampião é um lampião. Quem sabe se o tocar poderá imaginar sua forma.
O bobo segurou as mãos do homem. Encaminhou-as em direção ao lampião. Percorreram, exploraram, sentiram.
- Que forma engraçada possui seu lampião.
- Não é meu. É da bola.
Ambos encontravam-se sentados carregando seus respectivos objetos.
- O que é um bobo da corte? - perguntou o bobo.
- Me disseram que eu saberia quando o encontrasse. Que todo bobo tem magia, fascínio e carrega consigo a verdade.
- Vamos continuar sentados. Quem sabe passa um bobo por aqui.
- Já estou cansado de minha viajem. Irei repousar. Mas fique atento por mim. Se algum bobo aparecer me chame.
O homem se deitou.
O bobo o observava ressonar.
Colocou seu ouvido sobre o coração do homem.
Assustou-se.
Repetiu. Dessa vez manteve-se com o ouvido, como tentando decifrar o som interno. Num repente levantou-se e levou a mão até o seu peito.
Nada.
Nenhum som.
Silêncio total.
Vazio.
Olhou para o lampião. Para o homem. Lampião. Homem.
Abaixou-se, abriu a tampa do lampião e emitiu um leve sopro.
O lampião acendeu. Uma chama viva. Resplandecente. E a aura levemente passou do azul para o escarlate, sendo possível contemplar sobre o chão alguns caixotes.
Caixotes de cores variadas. Vermelho, verde, marrom, roxo... Exatamente seis caixotes.
O bobo retirou uma bola de seu chapéu. A bola roxa. A levou até a caixa da respectiva cor. E assim fez com cada bola de seu chapéu, restando apenas uma.
Quando completou a tarefa o primeiro caixote se abriu. De dentro saiu um Rei. Vestindo um lindo manto e portando uma majestosa coroa.
Do segundo uma Rainha. Com o mesmo manto, no entanto com coroa diferente, um pouco menos majestosa.
Do terceiro um Bispo. Um Bispo velho e sereno.
Do quarto um cavalo. Forte e negro.
Do quinto ergueu-se uma torre de pedras cinzentas e pesadas.
Do sexto, finalmente, um peão. Carregando chapéu, laço e calçando - claro - botas.
- Ó Rei, vive para sempre!
O Rei deu um passo em sua direção.
- Carrego comigo um lampião e tenho como companhia um mortal com olhos vendados.
- Não me deve explicações Bobo. Deve apenas divertir-nos.
Nesse momento iniciou-se uma música (leitor nesse momento solicito ouvir a melodia sugerida e prosseguir a leitura: http://www.youtube.com/watch?v=8PQsRH3GSdU).
A Rainha fixou o olhar no bobo. Caminhou até ele. Deixou cair seu manto. E juntos travaram uma dança. Uma dança quente. Onde era possível observar fagulhas de um olhar para o outro.
Mãos deslizavam.
Pernas subiam.
O ar se enrubesceu ainda mais.
Os retalhos coloridos desapareceram.
Até que a música foi interrompida por um estrondo.
Todos se voltaram e contemplaram a torre ruir sobre o Bispo.
Pedras rolaram para todos os lados e o corpo do Bispo tombou sobre o chão.
O peão abaixou a cabeça, segurou o chapéu contra o peito e voltou para sua caixa.
O cavalo relinchou e num impulso saltou sobre a rainha e o bobo. Saltou três vezes. No terceiro salto paralisou no ar. E assim permaneceu.
A rainha removeu o chapéu do bobo. Abriu sua cabeça. E naquele vazio e escuridão pôs o lampião. Voltou o chapéu.
Caminhou até o Rei. Este se prostrou a seus pés em ato de reverência.
Estralou os dedos.
O cavalo lentamente retornou ao chão, caminhando até seu caixote, seguido pelo Rei e pela Rainha.
Aos poucos a luz azul retornou.
O bobo caminhou em direção ao homem.
- Desperta-te.
O homem aturdido sentou-se.
O bobo então retirou a venda de seus olhos.
O homem contemplou o baú e o abriu. De dentro saltaram penas coloridas. Saltavam e retornavam. Ficaram nesse movimento constante e o homem observava admirado.
- Já não preciso da bola e carrego o lampião.
O homem o observou, sem entender.
- Partirei e deixarei contigo a última bola de meu chapéu.
Retirou-a e a depositou próxima ao homem.
Lentamente partiu.
Saltar. Retornar.
Assim continuavam as penas. Até que entediado fechou o baú.
Olhou para o vazio.
Levou a mão até o peito.
Nada.
Nenhum som.
Oco.
Olhou para a bola depositada ao seu lado que começou a encher-se e a colorir-se.

domingo, 13 de setembro de 2009

Recordo-me de tudo iniciar-se numa tarde ociosa na Esquina.
Meus olhos abriam e fechavam pesados. O corpo langoroso, não emitia movimento algum. O único movimento existente era sentido em meu interior, onde sangue e coração exerciam seus respectivos trabalhos.
Viram a esquina duas figuras: uma cigana e um anão. A primeira, alta, morena, com longos cabelos da cor do ébano e grandes olhos azuis. Trajava um longo vestido vermelho e um xale verde. Não carregava jóia, mas um singelo pandeiro.
O anão com roupas de feitio simples, calçava uma bota de tecido e trazia consigo um bandolim.
Passaram por mim e pararam. Olharam entre si. O anão pegou seu bandolim e passou a executar uma graciosa canção, logo seguido pelo pandeiro. Retornaram sua caminhada, agora tocando. Despertada de meu ócio, levantei-me e meus pés como por encanto, passaram a dançar. A cigana virou e sorriu. Chegou-se a mim e juntas, caminhávamos e dançávamos.
Chegamos frente a um campo repleto de trigo. Meus olhos extasiaram-se com o dourado emanado pela plantação.
- Descalça teus pés! - ordenou o anão.
Obedeci.
Adentramos.
Meus pés revolviam a terra macia. E quando retomamos a caminhada os trigos começaram a balançar e emitir uma música suave. Conforme passávamos, inclinavam-se em gesto de reverência.
Quando passamos toda a plantação deparamos com duas cachoeiras. De uma jorrava água e de outra fogo.
Muitos animais as circundavam. Esquilos, raposas, castores, leões, tigres, camelos, elefantes, pássaros - e aqui leitor, adicione de sua imaginação quantos animais quiser. Eu observei estes.
Todos se prostraram em reverência.
Caminhamos até uma caverna entre as duas cachoeiras. Ali havia um vento forte e incessante e meus pés sentiam a textura de uma terra extremamente macia e quente, mas não queimava.
Deparamos com uma grande pedra. Nessa pedra havia uma fenda onde notei algo escorrendo.
- Prove! - disse o anão.
Aproximei-me e passei os dedos no líquido. Levei-o a boca. Era mel. Quando passou por minha garganta senti meu coração aumentar sua frequência. Meu corpo era preenchido pelo som de suas fortes batidas. Temi.
- Não temas. Seu corpo há de se acostumar.
Saímos da caverna. Os animais continuavam em seus postos.
- Nessa tarde iremos recebê-la entre nós.
Ele olhou para a cigana e continuou:
- Já sabes o que deves fazer.
Fui conduzida pela cigana a um estábulo. Ali estavam três cavalos: um branco, um negro e outro castanho. Todos vistosos e lustrosos.
- Escolheis um.
- Não o sei como fazer.
- Passarás a noite com eles. Quando amanhecer deverás ter escolhido um.
Retirou-se.
Sentei-me sobre o feno. Um pequeno lampião nos iluminava. O cavalo negro se aproximou e disse:
- Se me escolherdes não irá arrepender-te. Sou forte como um touro e valente como um leão.
Logo após chegou o branco.
- Não escutes o negro. Ele esquece que além de força e valentia faz-se necessário a inteligência. E isso só eu possuo. Se me escolherdes não irá arrepender-te.
O castanho não se aproximou. Apenas mantinha seus olhos fixos em mim.
Deitei-me sobre o feno e não percebi quando meus olhos se fecharam.
Acordei no meio da noite sentindo o ar gélido invadir o estábulo. Meus dentes tremiam. O cavalo castanho se aproximou.
- Peço licença. - deitou e encostou-se em mim.
Aos poucos seu corpo quente me aqueceu e voltei a dormir.
Quando senti os primeiros raios de sol invadir as tábuas do estábulo, abri meus olhos. Ao meu lado havia uma maçã.
- Espero que gostes de maçã - disse o cavalo.
Sorri e dei uma dentada na suculenta maçã.
A cigana entrou.
- Já escolhestes?
- Sim. O castanho será meu companheiro.
- Como quiserdes.
Saímos do estábulo. Todos nos esperavam.
- Entenderás sua missão no caminho. Estaremos esperando-os. Leve consigo essa pequena adaga e essa garrafa de vinho.
Agradeci e retirei-me caminhando ao lado do cavalo.
Ele me conduziu. Diante de nós surgiu um vasto campo e muitas montanhas ao fundo. O sol brilhava e o céu era límpido de um azul vivo.
Paramos frente a um lago. As águas começaram a agitar-se.
- Suba em mim. Aconteça o que for não solte de minha crina.
Quando sua pata encostou-se às águas do lago estas aumentaram seu movimento. Começaram a levantar ondas que nos encobriam. Minhas mãos suavam e eu sentia seu corpo tremer. O barulho era ensurdecedor e tudo parecia girar. O agito multiplicou-se. Ele continuava caminhando bravamente.
De súbito a água esquentou. Muito. Lágrimas começaram a escorrer de seus olhos. Mas continuava bravamente. Aos poucos a temperatura foi decaindo. Decaiu. Decaiu. Congelou.
Impossibilitado de continuar ele estagnou. Tentava forçar as patas, mas estas se encontravam imóveis.
Queria ajudá-lo e não sabia como. Fechei meus olhos. Respirei fundo. Lembrei-me do vinho. Abri a garrafa e derramei o líquido sobre o gelo. No mesmo instante o gelo derreteu e o lago ficou como antes. Tranquilo.
Ele levantou-se e de júbilo relinchou.
Saímos do lago e seguimos nossa caminhada.
Deparamo-nos com um bosque. Um bosque de espinhos. Grossas árvores cobertas por espinhos.
Aquilo machucava. Feria. Rasgava nossa pele. O sangue escorria, misturado com o suor do sofrimento.
- Não solte de minha crina.
- Não soltarei.
- Confia em mim?
- Com minha vida!
- Então feche os olhos.
Fechei.
Seu corpo abaixou-se. Senti passar sobre nós algo grande e frio. Arrepiei-me. Um calafrio me dominou.
Passou.
Quando levantou perguntei:
- Porque paramos?
- Não era tempo de continuar. Observe.
Quando levantei meu olhar, notei que três serpentes deslizavam ao longe.
O bosque havia chegado ao fim.
Quando saímos, seu corpo tombou.
Assustada, inclinei-me sobre ele e notei seus olhos se fecharem. Coloquei meu ouvido sobre seu corpo. O coração havia parado.
Comecei a chorar. Sentia-me sozinha. Perdida.
Algo se aproximou. Era o cavalo negro.
- Vem comigo. Sou forte e valente.
- Retira-te daqui. Não te escolhi eu. Aparta-te.
Levantei-me, cansada e machucada. Precisava fazer algo. Notei que próximo a nós havia uma pequena fonte de água cristalina. Caminhei até ela e com as mãos em concha comecei a trazer água e limpar seus ferimentos.
Limpei todo o sangue e suor. Quando terminei a fonte secou.
O véu da noite estendeu-se sobre nós.
Percebi que sua respiração voltou. Mas seus olhos não abriram. Exultante o observava.
Seu corpo começou a tremer. Percebi que estava frio. No entanto me encontrava quente. Encostei-me a ele e nossa temperatura igualou-se.
Quando o sol completou seu ciclo e reapareceu, ele encontrava-se em pé.
- Podemos continuar.
O campo estendia-se a nossa frente. Avistamos ao longe um carvalho. Aproximamos.
- Chegou o momento final - notificou-nos o carvalho - No entanto, apenas um poderá continuar. Escolham qual irá retornar e com a adaga que trouxestes retirará a vida do qual decidir aqui permanecer.
- Mata-me! Já a ajudei chegar ao fim e já vivi por muito tempo. Não necessito viver mais.
- Nunca! Como matarei um ser que tanto me ajudou? Retira senão a minha vida e retorna para seu povo.
Ele fechou seus olhos e aproximou sua cabeça a minha. Senti que precisava fechar os meus também. E assim fiz.
Naquele momento comecei a ouvir seus pensamentos.
"Como saberemos se o carvalho nos diz a verdade? Porque haveríamos de tirar a vida do outro se iniciamos juntos essa jornada?"
Naquele momento entendi o que precisava fazer.
Segurei minha adaga e num impulso feri o tronco do carvalho. Ele tombou.
As cachoeiras surgiram novamente.
A cigana.
O anão.
Os animais.
- Bravo! Bravo!
- Já podes tornar-se integrante de nosso Reino. - disse a cigana. Ela me guiou até a cachoeira de fogo e disse:
- Adentra-te.
Emergi meus pés e fui caminhando até emergir totalmente e o fogo cobrir minha cabeça. Sentia meu corpo queimar, porém sem me ferir.
- Volta-te e faz o mesmo na água.
Assim o fiz.
Quando saí, o anão caminhou até eu e o cavalo com uma corda nas mãos. Abaixou-se e amarrou-a em sua pata e depois em meu tornozelo.
- Serão eternamente únicos. Você dele. E ele seu. Ambos um.
A cigana agitou seu pandeiro. O anão dedilhou seu bandolim e retomaram a música que me conduziu aquele lugar.
Todos travaram uma bela dança.
Percebi que a corda havia desaparecido. E o cavalo também. Mas sentia sua presença dentro de mim.
Era momento de retirar-se.
Com lágrimas na face parti por entre o campo dourado carregando o significado daquela missão.
Calcei meus sapatos.
E o sol se pôs na Esquina.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Deitada sobre o pesado cimento da calçada da Esquina, sinto meu corpo molhar-se. Espantada, assento-me e percebo que a calçada encontra-se molhada.
Num repente observo uma gota de água escapulir do cimento e subir em direção ao céu.
Inúmeras gotas começam a escapar do cimento elevando-se ao firmamento e gradativamente formando uma espessa camada de nuvens. Um verdadeiro espetáculo “anti-gravitacional”. Sobem como em câmera lenta, sendo possível observar saírem do solo e estourar, de encontro as inúmeras nuvens já existentes.
As gotas cessam.
As nuvens descem. Descem morosas formando degraus. Precisamente sete degraus.
Levanto e caminho em direção ao primeiro degrau. Galgo todos os sete. São deliciosamente macios.
Chego ao topo.
Aos meus pés, nuvens. Sobre minha cabeça há um movimento incessante de folhas. Folhas secas como as de Outono. Farfalham e fazem um movimento circular.
Ao centro das nuvens jaza uma frondosa árvore pejada de limões. Limões verdíssimos e grandiosos.
Um dos galhos sobressai. Abaixo dele encontra-se um trono. Um trono forrado com veludo verde e com delicadas figuras de anjos e querubins esculpidos sobre o ouro que o reveste.
Assentada sobre ele, está uma mulher trajando um longo vestido nunca por mim visto antes. Este é de um tecido transparente, sendo possível notar seu corpo sob ele, mas dominado por inúmeros tons de verde.
Sua cabeça carrega uma graciosa coroa confeccionada por galhos entrelaçados. É uma Rainha. Encontra-se imóvel e parece não notar minha presença.
Um limão cai.
As folhas cessam seu movimento sobre nós.
A Rainha levanta de seu trono e caminha em direção ao tronco da árvore. Toca-o com o dedo indicador. O tronco abre uma fenda e da mesma emana um líquido pastoso também verde. A rainha retira o líquido e o passa sobre seus lábios. Volta a sentar-se.
O movimento das folhas retorna.
Outro limão cai.
As folhas novamente cessam seu movimento.
Por dentre as folhas sai uma graciosa mulher. Possui pequenas asas. Parece ser toda feita de folhas secas. Possui traços delicados, no entanto não possui braços e nem mãos.
Ela desce.
Caminha em direção a árvore ignorando a presença da rainha.
- Aqui têm cheiro de limão.
Abaixa-se e senta ao lado do limão derrubado.
- Gostas daqui?
...
- Onde habito nada cai. Tudo flutua. Sempre.
...
- Nunca provei um limão. Não possuo mãos, como pode observar, impossibilitando-me de apanhá-lo.
...
- Gostaria de ter mãos. Com dedos. Como as de sua Rainha.
...
- Você não pode voar? Imagina se ao invés de cair você voasse? Seria agradável ver limões voando.
O tronco da árvore emite um gemido. Aos poucos saem dedos, mãos e braços. Caem ao chão. O tronco se fecha.
A mulher levanta-se e caminha até eles. Estes voam e encaixam-se em seu corpo.
Desajeitada com seus novos membros, ela abaixa e apanha o limão.
Observa-o atentamente.
Inspira seu aroma. Expira.
Aperta-o entre os dedos, sentindo sua textura.
Leva-o a boca dando uma grande mordida.
Ao começar a mastigar a mulher cai ao chão, de joelhos.
As folhas cessam novamente.
Escorre um filete de sangue que parece sair das asas da mulher. O pequeno filete começa a aumentar. Aos poucos o chão até então alvo, torna-se escarlate.
Suas asas caem.
- Não - ela diz gritando - não gosto de limão!
As folhas secas desaparecem e as da árvore começam a cair lentamente.
Quando todas já estão ao chão, a mulher estoura e vira uma poeira marrom.
A Rainha, até então imóvel, levanta-se de seu trono.
Caminha até o limão. Leva-o em direção a boca. Quando toca seus lábios, a fruta restitui-se a forma original, como se nunca tivesse sido provada.
A Rainha abre sua mão e o fruto levita ao seu lugar original.
Ela caminha até as asas enodoas de sangue. Retira sua veste e as colocam sobre suas costas.
Sobre nós desce um vendaval, levantando todas as folhas.
Quando o vendaval cessa o chão volta a ser alvo.
A árvore encontra-se frondosa.
O trono vazio.
Sua Majestade encontra-se paralisada. Morta.
Seu corpo é engolido pelas nuvens.
A raiz começa a emitir um movimento. Seus galhos começam a balançar. A árvore inteira abre-se ao meio e de seu interior, uma Rainha - sem asas - caminha em direção ao trono. Possui os mesmos traços e trajes da anterior.
Senta-se sobre o trono.
As folhas secas retomam seu incansável ciclo.
O chão treme.
As nuvens transformam-se em gotas.
E junto com as gotas, retorno a calçada da Esquina.

sábado, 5 de setembro de 2009

É por - do- sol na Esquina. O sol dilui-se sobre o cimento. Calmo. Lento. Preguiçoso. Majestoso.
Como um menino espreguiça seus braços lânguidos. E suas línguas de fogo esvaem-se.
Sobre ele noto um pequeno borrão que gradativamente aproxima-se.
Aproxima-se.
Aproxima-se.
É um balão. Imenso. Grandioso e magnífico como são os balões. Emana certa magia. E esse não era diferente. Negro e com estrelas douradas o circundando.
Desce tranquilamente pousando sobre a Esquina.
Paira uma atmosfera de mistério.
A noite cai sobre nós.
Escuto o ruído de uma porta. É a porta do balão se abrindo.
Abre totalmente.
Curiosa caminho até ele. Mas é impossível enxergar algo.Está tudo negro.
Adentro o balão. A porta se fecha com um estrondo.
Aos poucos surge uma luz. Fraca. E passo a passo observo nascer o sol. Uma grande claridade agora me preenche.
Não é o sol de todo dia. É mais forte. Impactante. Mágico.
Aspiro. E sinto um doce cheiro de baunilha penetrar por minhas narinas.
Aos poucos abro meus olhos até então semi cerrados. E percebo que estou sentada na orla de uma praia.
Sinto a areia sob meu corpo. Uma areia fina, delicada e cândida. Meus sapatos desapareceram. E meus pés deliciam-se em penetrar meus dedos na areia e emergir novamente.
Atrás de mim escuto o burbúrio das ondas. Viro-me e contemplo o mar. Pomposo e num tom de esmeralda. Levanto-me e caminho até ele. Deixo as ondas baterem em meu tornozelo. Batem e voltam. Sempre. Num ritmo constante.
Me encontro embevecida com toda essa maestria quando escuto o som de um trotar.
Olho e vejo passar um unicórnio. Um lindo unicórnio, diga-se de passagem. Vermelho e com chifre de mármore. Ele para. E olha para mim curioso.
Ele abre sua boca e emite palavras por mim desconhecidas. Palavras que me cutucam. Que me preenche mesmo sem eu entender. Palavras que fazem meu corpo mortal tremer e temer.
Ao notar que não entendo sua linguagem, ele caminha até mim. Inclina sua cabeça e toca seu chifre em minha testa.
- Agora podemos conversar. Você irá me entender.
Sorrio.
- Quem é você? De onde vem?
- Sou uma humana. Viajante. Venho da Terra.
- Interessante. Poucos terráqueos nos visitam. Como conseguiu chegar até aqui?
- Através de um balão que pousou em minha Esquina Surreal.
- Você encontra-se em uma ilha.
Só então observo atrás da praia, se estender uma sutil vegetação. Algumas árvores e muitas flores forrando o chão. Descobri a origem do odor de baunilha.
- Posso conhecê-la?
- Sim. Precisamos descobrir o motivo de sua vinda. E só adentrando ao jardim iremos descobrir.
Retiro-me do mar. Ele se abaixa e diz:
- Pode subir.
- Não irei te machucar?
- Apesar de parecermos frágeis, somos como de rocha interiormente.
Subi.
Cavalgamos em direção as flores.
Passamos por árvores de variadas formas e tamanhos. Algumas por mim já conhecidas, outras nunca vistas.
Flores rasteiras, flores altas que subiam por entre as árvores e seus troncos. O jardim parecia ser infinito.
Estava contemplando um espetáculo de cores. E o cheiro. Forte e doce.
Caminhamos por muito tempo. Enquanto caminhávamos o unicórnio cantava. Não consegui entender seu canto. Mas era belo. Belíssimo. Ouso dizer sublime.
Estávamos assim, quando encontramos uma cerca de madeira. Simples. Tosca. Ela abriu sozinha, dando passagem a nós.
Era um caminho. Um caminho rodeado por árvores semelhantes aos salgueiros. No chão havia pedras. Brilhantes. Diamantes. Era um caminho plano.
O unicórnio parou de cantar.
Chegamos frente a uma mesa do mesmo material da cerca. Sobre ela haviam três taças de ouro. Do mesmo tamanho. De uma mesmíssima dimensão.
O unicórnio abaixou e eu desci.
Quando desci, ele dobrou suas patas, e ficou como de joelhos, sobre o chão. E eu entendi que precisava fazer o mesmo.
Estava diante de algo muito grandioso.
Ficamos assim. Silêncio.
Até que vi um pássaro descer. Um pássaro grande semelhante as fênix. Era dourado.
Desceu e pousou sobre a mesa.
Ao pousar dobrou suas patinhas ficando como nós, de joelhos.
Do alto desceu um clarão. Após o clarão um facho de fogo. Caiu primeiramente sobre a taça do meio. Depois sobre a taça da direita. E seguiu a da esquerda. Subiu novamente. Só então notei que o fogo havia descido do sol.
O pássaro levantou-se. Colocou seu bico pontudo dentro da taça do centro e bebeu do seu líquido interior. Fez o mesmo com a taça da direita e logo após com a da esquerda.
Ao pousar a última taça sobre a mesa o pássaro deitou-se sobre a mesa.
O clarão retornou. Dessa vez sobre o pássaro. Este último levantou-se. E começou ali uma transfiguração. Das patas nasceram pernas. Das asas braços.
O pássaro transformou-se numa criança. Pequena e alva. Encontrava-se nua. Mas para estar ali era preciso estar assim.
A criança caminhou até nós. Contemplou-nos e emitiu o sorriso. Um sorriso amplo e sincero. Extremamente sincero, como só as crianças conseguem emitir.
Passou suas mãozinhas sobre meu cabelo. Ao tocar-me meu corpo estremeceu e senti-me estagnada. Paralisada. Uma sensação de paz me invadiu. Não sentia nada. Nem mesmo as batidas de meu coração.
Ela retirou sua mão depressa. E a pousou sobre o unicórnio. Travaram um canto. O mesmo canto. Como se fosse ensaiado. Havia sons de violinos e flautas. Até hoje desconheço a origem.
Retirou a mão do unicórnio e virou-se. Caminhou novamente até a mesa. E subiu. Voou.
O unicórnio me tocou com o chifre. Entendi que precisávamos nos retirar. Subi.
E voltamos pelo caminho dos diamantes. Ao chegar à cerca paramos. O unicórnio abaixou e abocanhou um pequeno diamante.
Passamos pelo jardim. E chegamos novamente à praia.
Desci. Ele colocou o diamante na areia.
- Vire-se.
Obedeci. E com o canto dos olhos observei o unicórnio quebrar o diamante em sua boca. De dentro escorreu um líquido transparente e límpido. Ele soltou o líquido sobre meu cabelo. Escorreu e senti um gostoso arrepio me invadir.
- Sua viajem termina aqui Terráquea.
- O que te digo?
- Nada. Encontrar-nos-emos novamente.
E com o mesmo trotar que chegou se retirou.
A claridade diminuiu gradativamente. A noite voltou.
Retirei-me do balão. Sentei sobre a calçada da Esquina com aquela sensação inefável e inexprimível me dominando.
E observei o balão voar, despedindo-se da Esquina.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Uma fita amarela voa. Uma fita amarela como queira imaginar.
Ela pousa sobre a calçada da Esquina.
- Cadê minha fita amarela? - diz uma voz masculina aguda.
Adentra a cena, esbaforido, um palhaço. Alto, com roupas coloridas, uma cartolinha marrom na cabeça. Possui pequenos tufos laterais de cabelo laranja. Segura um imenso guarda-chuva, enrolado, também colorido. Sapatos também imensos e - que interessante! - esse palhaço tem algo diferente dos demais: possui quatro mãos. Sim, duas mãos como as nossas e logo abaixo mais um par de mãos. Par de mãos superior, par de mãos inferior.
Ele tromba com uma menina.
Menina de cabelos ruivos, preso com um imenso laço azul. Vestido rendado e sapatos de verniz. Tudo azul. E uma pequena boneca de pano, presa em seus braços.
Trombam.
O palhaço cai e a boneca voa.
A menina o olha com pavor em seus olhos. Sim é visível o medo que invade suas entranhas.
- Menina você viu uma fita amarela? - diz apoiando-se sobre as mãos inferiores para levantar.
A menina apenas olha, não conseguindo ocultar seu temor.
- Você... Você derrubou minha boneca!
- Eu apenas quero minha fita amarela que voou para este lado!
A menina se ajoelha em direção à boneca. Segura delicadamente em suas mãos.
- Não chora. Mamãe chegou. - Embala a boneca - Shiuuu! Está tudo bem... Eu estou aqui!
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
O palhaço encontra sua fita amarela.
- Achei!
- Silêncio! Ela não pode te ouvir senão chora. Não se aproxime dela!
- Espere... Sinta... Está chovendo!
- É bom que chova! Quem sabe os pingos te molham e te apagam daqui! Já ficou muito tempo nesse lugar. Esse lugar não te pertence! Isto (aponta o guarda-chuva) não te pertence! Nada te pertence!
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
O palhaço abre seu guarda-chuva.
- Veja, eu sabia que choveria. Você, no entanto, não. - Sai saltitando e cantalorando.
- Prefiro não saber mesmo. Abomino o previsível.
Ele para.
Caminha pé ante pé em direção a uma pequena pedra. Uma pedra cinza e chata.
- Menina! Um achado!
Ela olha.
- Uma pedra. O que poderá fazer com uma pedra?
- Poderei concertar meu carro. Era exatamente esta a parte que faltava.
- Como se pode concertar um carro com uma pedra?
- Disso eu entendo muito bem. Vou guardá-la comigo.
Segura a pedra com sua mão esquerda do par de mãos inferior.
- E sua fita amarela? Já a encontrou?
- Sim. Já está comigo!
- Tem certeza?
- Não podemos ter certeza de nada. Apenas acreditar. E eu acredito que esteja.
A menina levanta.
- Parou a chuva.
- Pra mim ainda não. Sinto pesados pingos cair sobre meu guarda-chuva.
- Estás louco!
- Quem não está?
- Prefiro pensar assim. É mais confortável.
- De conforto estou carregado. Prefiro sentir feridas, espadas e lanças. Nada temo.
- És um palhaço imortal?
- Posso te dizer que sim. Na vida já passei e me enfadei. Nada de mortal me atinge mais.
- Lembrei de minha mãe. Ela dizia que se quiséssemos ser imortal era simples, bastava querer. Até hoje não entendo.
- Nem eu.
- Sua mãe te dizia isso? - diz a menina com espanto.
- Não. Mas a sua sim.
Pousa um silêncio. A menina deita e arruma sua boneca sobre seu braço direito. O palhaço vira seu guarda-chuva de ponta cabeça e senta sobre ele.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
- Parou a chuva.
- Sim. Prepare-se os peixes já chegam. Isso é certo: quando chove, eles chegam.
Passa sobre eles um cardume de lindos peixes dourados.
- Chegaram. Andam sempre em bandos.
- Temem a solidão. Sábios são. Solidão me enoja. Faz-me sentir fraca e impotente.
- Faz-se forte apenas quando estás acompanhada?
- Sim, por isso não perco minha boneca. Sem ela enfraqueço.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
Passam nesse momento três peixes: um vermelho, um verde e um lilás.
Travam uma linda dança. O peixe vermelho rodopia empolgado. O verde saltita pelo ar e o lilás apenas observa. O vermelho para, o lilás inicia. Gira em volta do palhaço e desce sobre a cabeça da menina. Sobe novamente.
O palhaço aplaude. Os peixes agradecem e retiram-se.
- Que bela dança - diz a menina - E sem música.
- Não ouvistes a música? Cada movimento era contemplado por uma belíssima canção!
- Não ouvi. Aliás, prefiro não ouvir. Música meche com a boneca. E a prefiro imóvel.
- Como és egoísta. Pensa por ti e por ela. Deixa a boneca pensar livremente.
- Ela não pode tomar suas próprias decisões.
- Como és tola menina.
Silêncio.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
- Já não passam mais peixes.
- E seu temor por mim também.
- Não sinto temor por ti. Sinto por ela. Ela não pode te conhecer.
- A chuva voltará. Vou me retirar antes que chegue.
O palhaço levanta e fecha seu guarda-chuva.
- Foi bom ter voado minha fita. Se não fosse por ela não teria encontrado a pedra.
Retira-se cantarolando.
A menina senta. Coloca a boneca sobre o colo.
- Não se preocupe. Se chover, te protejo.
Delicados pingos de chuva começam a cair.
- Voltaram! Será breve... Eu acho.
A boneca nesse momento pisca. E de sua boca sai uma fita amarela. Aquela que vocês imaginaram.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...

quarta-feira, 26 de agosto de 2009


Essa noite recebi uma ilustre visita na Esquina.
Um mago que chegou sobre uma balança. Uma balança constituída basicamente de cordas e madeira. Balançava sereno, como se nada de externo o afetasse.
Não chegou só.
Em seu colo repousava um gato. Um gato em tons de esmeralda.
Sobre seu pé apoiava-se um coelho. Um coelho com olhos grandes que nunca piscavam.
E em volta de seu pescoço, enrolava-se uma serpente.
Eram três conectados em um.
Balançavam serenos.
O mago sustentava uma expressão austera e de seu olho esquerdo via-se verter lágrimas. Lágrimas de sangue. Sangue denso e de um vermelho vivo.
Gotejava uma a uma sobre o cimento da calçada. E ao tocar o cimento, transformava-se em delicados cristais.
1 segundo.
2 segundos.
3 segundos.
PUF!
O cristal estourava.
Brotar.
Escorrer.
Pingar.
Transformar.
Estourar.
O balanço cessa.
O gato salta e caminha tranquilamente, em círculos. Dá três voltas em torno do mago e senta.
Brota.
Escorre.
Pinga.
Transforma.
Mas este não estoura.
O gato caminha até ele, coloca-o na boca. Leva para o mago. Este pega o cristal com ternura. Num impulso o arremessa contra o chão. O cristal parte-se em três.
O gato novamente caminha, agora em direção a uma parte. A primeira. Coloca-a na boca e a digere. Retorna para seu antigo posto, no colo do mago.
O coelho desliza pelos pés do mago em direção ao chão. Abocanha a segunda parte do cristal e caminha até o mago.
Este parte o cristalzinho em dois e penetra ambos nos respectivos olhos do coelho, que retorna aos pés do mago.
Agora a serpente. Desenrola-se do pescoço do mago e com suavidade segue em direção a terceira parte do cristal. Enrola-se sobre ele. Aos poucos se estica novamente.
Ao retornar para o pescoço do mago já não havia mais parte alguma do cristal.
Todos os olhares voltam-se para cima. Sobre nós descem dois astros.
Um grande e resplandecente de onde gotejam lavas.
O outro menor e opaco emitindo filetes de prata.
O mago levanta cada ser ali presente em direção aos astros.
Deixa gotejar na boca do gato um pingo da lava e um filete de prata.
Sobre os olhos do coelho, o mesmo. Lava e filete.
E sobre o corpo da serpente deixa escorrer lava e filete.
Voltam as suas respectivas posições.
Os astros partem.
O balanço suave retorna.
O mago emite um largo sorriso, seguido de uma estrondosa gargalhada.
E gargalhando desapareceu, devolvendo-me a solidão da Esquina.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Recolho-me na esquina meu canto predileto. E quando digo canto refiro-me ao canto musical que chega nesse momento aos meus ouvidos. Sobe pelo solo, atravessa a pesada calçada de cimento vermelho e finalmente chega aos meus ouvidos. Um canto longínquo, mas belo.
Num repente, o cimento vermelho modifica-se. Começa a transformar-se em relva, verde e fresca com o orvalho da manhã. Árvores surgem, das mais variadas espécies, pairando no ar um odor adocicado de frutas silvestres.
Quando dou por mim, estou na porta de um cogumelo. Sim, um imenso cogumelo com janelas e porta. A porta encontra-se aberta, me convidando para entrar.
Entro e caminho devagar, pois nunca tinha visitado aquele cogumelo antes. Outros sim. Aquele não.
Escuto vozes. Muitas vozes. E o canto, que não cessa e cada vez fica mais forte. Mais denso. Mais colorido, se é que você pode me entender.
Caminho por um longo corredor, iluminado apenas por um candelabro. A cada passo dado pareço estar mergulhando. E realmente, estou mergulhando. Meus pés sentem água. Uma água “alanrajada” e brilhante numa temperatura muito boa. Nem muito fria e nem muito quente.
Uma sensação de torpor invade meu corpo.
Meus pés param. Não obedecem mais ao meu comando. Sinto-me paralisada externamente, pois dentro de mim parece haver um terremoto.
Um tremor interno parte dos meus pés, percorre minhas pernas, tronco, braços, mãos, pescoço e finalmente a cabeça. Tudo para. O canto que escutava, agora parece estar saindo de mim. Sim, algo dentro de mim emite o canto. E ele sai.
Sai por meus poros. Cada poro emite uma nota daquele canto sublime.
Sinto tocarem minha mão. Quando olho, ao meu lado esquerdo está algo nunca visto antes. Não é homem. Não é mulher. No entanto, possui corpo e cabeça. Parece flutuar. Cabelos longos esvoaçam como se ali houvesse um grande vento. Ele toca minha mão e sou levada por ele passivamente ao fundo daquelas águas.
Caminhamos lentamente. Ele olha diretamente aos meus olhos, e sinto como se nos conhecêssemos a muito tempo. Sorri com brandura.
Percebo que estamos muito abaixo do nível da água, no entanto não está mais escuro. Está muito iluminado. E o canto agora me preenche. Carrega-me. Domina-me.
Paramos.
Sem me olhar, ele diz:
- Aqui flui a eternidade.
Sua voz ressoa alta e forte, como um trovão.
Olho a minha volta. O canto cessa.
- Você não pode entrar. Somente observar. E sentir. E acreditar. Aqui habita algo que seres racionais precisam desprender-se de sua racionalidade para entender. Irão sentir algo que nunca sentiram e em sua ânsia de querer entender e colocar significado em todas as coisas, acabarão estragando o lugar.
Continuamos a caminhar. Passamos por uma ponte, onde a cada passo dado sinto meus pés deslizarem por letras entalhadas em cedro.
"S"
"É"
"C"
"U"
"L"
"O"
"S"
"SÉCULOS".
- Não vamos sair da ponte, pois senão o que está desse lado nos dominará. Apenas observe.
Observei. Mas não era possível ver absolutamente nada.
Estava tudo negro, gélido e estagnado. O único movimento era emitido pela cabeleira do ser que me acompanhava.
Fixei meu olhar. Foi quando vários pontos começaram a surgir. Pontos brilhantes. Espera aquilo não eram pontos. Eram olhos. Vários olhares.
Fixos em mim. Em cada olhar era estampado o medo. Medo de algo.
- Esses vivem no assombro. São dominados pelo Nefasto. Muitos seres racionais preferem habitar esse lugar. Na verdade posso te dizer, a grande maioria. Como pode perceber deixamos livre. Colocamos dentro de cada ser o livre arbítrio. Cada um busca aquilo deseja. A ponte possui dois lados. É apenas questão de escolha!
- Agora observe embaixo da ponte.
Embaixo fluía uma neblina. Dessa neblina misturavam-se inúmeras cores. Cores nunca antes observadas e outras já existentes.
- Aqui observamos o pensamento dos seres racionais. As cores brilhantes são aqueles que conseguem desprender-se de sua racionalidade e achegar-se a nós. As cores intricadas são daqueles trancafiados em si mesmos, que não conseguem desprender-se de si mesmo. E outras cores seguidores de Nefasto. Existem cores repetidas, aliás muitas. E cores que nunca foram vistas antes.
De repente tudo parou.
- O cogumelo irá ruir. Não se preocupe. Estivemos, estamos e estaremos em todos os lugares, ao mesmo tempo. Esse foi apenas um portal. Leve consigo essa vela. Quando a chama se apagar nos encontrará novamente.
Minha visão tornou-se escarlate. Senti-me sugada por um vento muito forte e rápido, pois quando abri meus olhos estava na Esquina novamente. Segurava a vela muito forte a ponto de a cera escorrer em meus dedos.
Coloquei-a sobre a mala. A mala que chegou carregando a Vida.
Fechei meus olhos. Fora uma viajem longa. Meu corpo parecia cansado. Reclinei-me sobre o cimento e sorri. Meus poros aos poucos se fechavam, e percebi cada nota do canto maravilhoso esvair-se em direção a chama resplandecente da vela.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009


Na esquina Surreal, sento-me. Observo uma caixa pequena e retangular. Abro. Escapa um ar abafado. Dentro observo pessoas.
Muitas pessoas. A maioria com semblantes cálidos. Olhares fugidios. Cansadas talvez...
Um homem coça a cabeça. Uma criança chora.
Uma senhora quase escorrega, escorando-se em um jovem de mochila.
Uma mulher com semblante altivo discute com um pequeno aparelho. Não consigo entender qual o motivo da discussão.
Um aparelho pequeno. Tom de cinza. Ele abre e fecha.
Na frente da caixa retangular possui um homem, gordo e careca que parece guiá-los. Eles confiam no homem gordo e careca.
Escuto reclamações. Uns reclamam de a caixa estar lotada. Outros pelo atraso da caixa.
Começo a ler pensamentos.
Homem que guia:
"Como deixei pude não sair com a Laura ontem. Será que consigo hoje... Ela me pareceu brava. Mas acho que não, ela sempre me aceitou de volta. Não custa tentar... Na hora do almoço mandarei uma mensagem a ela.”

Mulher do aparelho:
"Canalha. Não pode puxar meu tapete assim! Vou mostrar a ele quem manda. Onde já se viu. Eu que dou duro o dia inteiro e a outra que é favorecida. Isso não pode acontecer! Não comigo!"

Enjôo de ler pensamentos. Sinto ânsia.

Outros tecem diálogos. Quem sabe seja valioso.

Aproximo na expectativa de entender o que dizem:

- Bom dia.

- Bom dia, tudo bem?

- Tudo. Hoje fez sol.

- Sim. Diferente de ontem que estava um pouco frio.

- Tem razão. O homem do jornal disse que amanhã terá um pouco mais de vento.

- Eu ouvi dizer mesmo.

...

- Está trabalhando naquele lugar ainda?

- Sim. Gosto de lá. E você, o que anda fazendo?

- Casei. Tive dois filhos.

- Verdade? Tenho três. Os seus dão trabalho?

- Não, ainda são pequenos.

- Então se prepare. Filho é despesa e dor de cabeça.

- Minha amiga me falou o mesmo.

- Bom, chegou o meu ponto. Aparece em casa.

- Eu vou sim. Mas vai você em casa também.

- Quando der eu vou sim. Até mais.

- Até.

Fecho a caixa num súbito. Sinto algo embolar dentro de mim e subir como fogos. Explode. Da minha boca saem estrelas coloridas.
Observo uma a uma cair ao chão.
O que fazer com elas?
Já sei! Quem sabe colocar dentro da caixa?!?
Coloco.
Todos observam.
Não conseguem entender de onde surgiram estrelas. Como não entendem, as ignoram.
Pisam nelas. Chutam-nas.
Retiro as estrelas coloco no bolso.
Quanto à caixa guardo num canto da esquina. Quem sabe um dia entenderei a espécie contida dentro daquela caixa.

"Nós, humanos, só conhecemos os rios na superfície. Os crocodilos os conhecem nas funduras. Nas funduras os rios são escuros e tranquilos como os sofrimentos dos homens. Essa eu não sabia, que os sofrimentos são escuros e tranquilos...
Aí ele diz uma coisa inusitada: que o rio é palavra mágica para conjugar a eternidade. Eu havia aprendido o contrário, que rio é palavra para conjugar tempo. Pelo menos foi assim que ouvi de Heráclito, o filósofo: "tudo flui, nada permanece, tudo é rio..."
Mas lendo as Escrituras Sagradas percebi que certo estava o João: "a eternidade mora no fundo das águas, no fundo do tempo".
Quando Deus quis fazer artes mágicas com Jonas, jogou-o no mar, onde um peixe o aguardava de boca aberta, e por três dias ficou na fundura das águas, como feto na barriga da mãe, até que se transformasse em profeta. O que não é muito diferente das metamorfoses que fazem um poeta - portanto confirmado pela Cecília Meireles e pelo T.S Eliot que afirmam que, para fazer poesia, é preciso ter olhos de peixe. Não é por acaso, portanto, que o ritual mágico para transformação do velho em criança, a que se dá o nome de "batismo", siga a metáfora do afogamento e do nascimento: o adulto é mergulhado, de corpo inteiro, nas águas de um rio: o velho que mergulha morre; a criatura que sai das águas é menino.
Não é por acaso, portanto, que o peixe seja, a um tempo, símbolo poético e símbolo profético: é que ele nada nas funduras do tempo, onde a eternidade gera os seus milagres."
(Trecho extraído de: SOBRE O TEMPO E A ETERNAIDADE, RUBEM ALVES)