quarta-feira, 11 de abril de 2012


Era uma charmosa tulipa. Uma tulipa com asas. Desceu silenciosamente na esquina e pousou sobre meu chapéu.

- Posso descansar aqui?

- Mas é claro. De onde vens?

- Ora! Como és tola! Do meu passeio matinal!

- E porque o cansaço?

- Porque estou fugindo. Fugindo de uma garotinha que insiste em me perseguir.

(...)

- Olha, lá vem ela! Vou me esconder!

- Mamãe, eu a vi. Ela está aqui...

- Filha, não tenho tempo para brincadeiras! Já te disse: flores não andam em supermercados!

- Mas eu vi mamãe! Juro que vi!

Aproximam-se de mim.

- Por favor, moça do chapéu: você viu uma tulipinha vermelha com bolsinha amarela?

Estava pronta a responder quando entra correndo um gato com uma graciosa gravata borboleta e segurando uma caixa preta.

- Olá moça do chapéu. Posso sentar ao teu lado?

- À vontade...

O gato sentou, abriu a caixa preta e tirou dela um lindo saxofone dourado.

- Escutem essa valsa. Aprendi hoje.

A mãe e a menina sentaram junto de nós e o gato começou a tocar uma deliciosa melodia em seu sax. O som nos envolveu.

Estávamos ali, embevecidos na valsa, quando adentra uma bailarina.

Vem rodopiando, fazendo piruetas e dando risadinhas graciosas.

Saltitava e sorria.

Junto dela um acordeonista de cartola. Começou a acompanhar o gato em sua valsinha.

E a bailarina dançava.

- Mamãe quando crescer posso ser igual a ela?

- Mas é claro querida! Só precisamos mudar algumas coisas...

- Que coisas mamãe?

- Seu cabelo. Seus braços. Suas pernas. Seus pés. Ou seja, você inteira!

A menina rompe num choro. A música muda. Começa a ficar agitada. Violenta. O sax grita e o acordeom acompanha o choro da criança.

A bailarina se aproxima da menina e diz:

- Não chores. Talvez possamos dar um jeito nisso tudo.

- Que jeito? Eu não quero mudar!

- Não quer ser como eu?

- Sim.

Nisso a tulipa que permanecia escondida em meu chapéu, rompe a cena com um grito aterrorizado. A música cessa no mesmo instante.

- Porque quer rodopiar? Porque quer saltar? Porque quer rir com graça? Menina tola! Menina tola!

O gato que permanecia sentado levanta-se e diz:

- Tulipas por aqui não são bem-vindas!

O acordeonista aproxima-se e diz:

-Aproxima-te tulipa!

A tulipa voa até os ombros do acordeonista.

- Consegues daqui ver o mar?

- Não. Mas sinto o cheiro e a brisa.

- Vamos pra lá?

- Não posso. Preciso ajudar a menina.

- Leva ela também.

A tulipa vira para a menina e diz:

- Quer conhecer o mar?

- Não. Quero ser como a bailarina e bailarinas não habitam no mar.

A mãe que permanecia calada até então, diz:

- Eu quero ir ao mar.

- O mar não aceita mulheres como tu. Apenas as puras entram nele.

A bailarina ri estrondosamente e em meio ao riso debochado exclama:

- Teu mar é podre! Podre!

- Diz assim, pois lá já habitou. No entanto lá não podes retornar.

A bailarina começa a chorar. O gato ira-se.

- A fez chorar. Pagarás por isso!

A menina levanta-se e diz:

- Bela bailarina... Não chora. Se você chora eu fico triste.

- Não posso. Para meu choro cessar só há uma coisa a fazer.

- E o que é? Diz e farei!

- Tirar todas as pétalas da tulipa.

- Oh! Mas não posso. Ela é tão bela!

- Eu sabia, eu sabia! - E aumenta o choro e os soluços.

A menina caminha até a tulipa e diz:

- Tulipinha... Não posso ver a bailarina chorando. Fico triste também! Você me deixa retirar todas suas pétalas?

A tulipa olha ao acordeonista que diz:

- Se aceitar não poderá retornar ao mar.

A tulipa voa lentamente até o chão. Deixa a bolsinha em minhas mãos.

A menina começa então a tirar pétala por pétala. Cada pétala retirada é uma gota de sangue que vai ao chão.

Gradativamente o choro da bailarina começa a cessar.

E quando a última pétala cai ao chão, uma poça de sangue se formou. A bailarina dá seu último soluço e abre um sorriso.

- Vamos? Agora poderá ser como eu!

A menina então responde:

- Não irei bailarina. Não sou como tu. Fiz isso para teu choro cessar. Ele cessou. Prefiro continuar como menina.

- Como preferir! Encontrei melhores... Vamos gato, preciso de ti!

O gato coloca seu saxofone na caixa.

- Vem bailarina.

A bailarina entra na caixa e lentamente se dobra até ficar do tamanho do polegar de uma criança.

O gato fecha a caixa e retiram-se.

- E agora? - diz a menina - A tulipa virou uma poça de sangue. Há como desfazer?

- Infelizmente não. Ela aceitou fazer isso por ti. Mas você ainda pode vir comigo conhecer o mar.

- Aceito. Adeus mamãe.

A mulher nada responde. Apenas observa a filha desaparecer com o acordeonista.

Quando desaparecem, ela caminha até a poça de sangue, descalça os pés e os mergulha no líquido escarlate.

Os pés tornam-se raízes. O corpo um caule. E as pétalas ressurgem. As asas rasgam a costa.

- Pode devolver minha bolsa?

segunda-feira, 15 de novembro de 2010


Senti um pingo tocar meus cabelos. Tocou explodiu e escorreu. Quando escorreu, contemplei o líquido denso bater contra o solo.
Era uma estrela que gotejava pingos no breu.
Comecei a sentir uma ânsia para ajuntá-los. No começo consegui. Depois me frustrei. Eram muitos.
Caminhei e parei sob ela. Levantei as mãos em forma de concha e deixei um pingo escorrer na linha da vida. Percorreu do nascimento até o término e foi para o pulso, acompanhando uma veia saliente.
Era belo e opressor.
Quando a estrela terminou de pingar, as demais começaram a se alinhar. Formaram uma delicada escada e me convidaram e subir.
Conforme galgava os degraus, estes iam esvaindo de forma que quando ao topo cheguei, não havia mais traços de escada.
As estrelas desapareceram. Não havia luz nem som algum.
Caminhei pelo escuro.
Devagar. E confesso que temendo. Temendo o inesperado e imprevisível.
Tropecei.
Havia algo ali.
Um corpo talvez.
Com o tato notei ser um corpo pequeno. Não havia braços nele. Mas encontrei asas. Asinhas.
Seus pés eram estranhos. Quando toquei, fizeram me lembrar de pés de bode.
Respirava. Suave. Calmo. Morno.
- Olá. Consegue me sentir?
- Pouco.
Sua voz era rouca. Feminina.
- Porque tanta escuridão?
- Porque quer claridade?
- Gostaria de saber onde estou. Ver com quem falo.
- Talvez não seja a melhor opção. Pode sentir medo daqui. Por onde veio?
- Pelas estrelas.
- Se der cinco passos para a esquerda encontrará uma garrafa. E cinco passos para a direita uma pena. Escolha.
Levantei e caminhei para a esquerda. Pude sentir o vidro gélido tocando minha pele.
- O que faço com ela?
- O que faria com uma garrafa?
Tateei a garrafa e pude sentir uma rolha tampando-a. Retirei. No mesmo instante um odor ácido invadiu minhas narinas. Percorreu minhas entranhas.
Meus olhos lacrimejaram.
- Não as perca.
- Quem?
- As lágrimas. Coloque-as na garrafa.
Deixei pingarem ali dentro. Não lembro quantas foram exatamente.
- Agora despeje em minha asa.
Assim fiz.
Quando concluí, um clarão caiu sobre nós. O corpo levantou. E pude contemplá-lo finalmente. Possuía um rosto delicado, como de menina. Longas madeixas ruivas e um tom de pele também rubro.
E contrastando com a delicadeza, pequenos pézinhos de bode.
- O que você é?
- Sou Lifo, o guardião. Olhe ao seu redor.
Olhei e pude notar que estava numa clareira. Muitas árvores nos rodeavam. Árvores de variadas espécies.
Lifo caminhou até o centro da clareira. Agitou suas asas. Uma suave brisa tocou minha pele e começou a agitar levemente as folhas de cada árvore.
Quando todas as folhas estavam num balanço sutil, Lifo pisou com força três vezes na terra.
Iniciou uma música suave. Cada árvore fez uma reverência a Lifo. Quando a última árvore terminou sua reverência, Lifo travou uma bela dança. Saltitava e dava pequenos vôos embalados por aquele doce som.
De repente a música parou. A brisa ficou gélida. As folhas interromperam seu balanço.
Percebi um leve tremor no solo.
Lifo estagnou-se.
E observei aproximar de nós a figura de uma velha segurando um cajado. Ela possuía um tampão em seu olho esquerdo. Trajava-se com modéstia e caminhava com dificuldade.
A velha caminhou até a primeira árvore e bateu seu cajado no caule da mesma. No mesmo instante as folhas começaram a cair sob o solo e tornaram-se secas. Da mesma forma procedeu a velha com as demais árvores.
Até que o solo ficou coberto de folhas secas e todas as árvores com seus galhos expostos.
A velha caminhou até Lifo e disse:
- Observou o que fiz?
- Sim.
- São frágeis. Inúteis. Com o pouco que fiz já consegui abatê-las.
Nesse instante, caiu de Lifo uma pequena madeixa ruiva. Ele me disse:
- Pegue essa madeixa e distribua seus fios em cada árvore.
Obedeci.
Nisso pude notar um moço alto aproximando-se de nós. Tinha longos cabelos negros e olhos azuis. A pele branca e carregava consigo uma lâmpada a óleo.
Caminhou até nós.
Quando se aproximou de Lifo, fizeram uma reverência mútua e saldaram-se.
- Estou contigo.
- Estou contigo.
O moço caminhou em direção a cada árvore. Em cada uma delas deixava pingar um pouco do óleo da lâmpada na raiz. Três gotas. Após caírem as gotas deixava por sete segundos a chama próxima aos fios da madeixa de Lifo. Ao terminarem os sete segundos, uma chama suave iniciava no fio de cabelo que ali estava.
Quando o moço concluiu seu trabalho, voltou ao lado de Lifo.
O moço prostrou-se no chão, colocou a lâmpada já apagada em sua frente e disse:
- Se esta se acender as folhas voltarão. Se não acontecer, as árvores morrerão. - Disse e cerrou seus olhos. Balbuciava palavras por mim incompreensíveis.
Lifo estava concentrando, com os olhos também fechados. A velha começou a andar em círculo, rodeando as árvores. Batia violentamente com seu cajado em seus galhos, tentando quebrá-los. E gritava:
- INÚTEIS! FRACAS! COVARDES!
Algumas árvores deixaram cair pedaços do casco ao serem agredidas. Algumas derrubaram pequenos pedacinhos de seus galhos.
Observei que de uma árvore começou a escorrer um líquido denso e rubro. Era sangue. Escorreu pelos seus cascos enquanto a velha dava uma estrondosa gargalhada.
Quando o sangue tocou a terra, o moço começou a tremer e lágrimas começaram a escorrer de seus olhos. Mas ele sorria. Levantou e caminhou em direção a cada árvore batendo palmas. Nisso Lifo começou a entoar um canto. Um canto lindo, puro que começou a me preencher e fazer meu coração saltar. Meu corpo tremia e meus pés começaram a saltar. Comecei a dançar.
O moço batia palmas. Lifo cantava. E eu dançava.
Nisso caminhei até a velha e tirei o tampão de seu olho. Nada havia ali, apenas um buraco negro.
Caminhei até a lâmpada dei três palmas em cima dela e a chama voltou a se acender. Quando se acendeu, coloquei apenas uma gota dentro daquele buraco.
No mesmo instante a velha transformou-se num lobo negro. Correu desesperado uivando e gemendo afastando-se de nós.
Coloquei a lâmpada no meio da clareira.
A brisa recomeçou.
Os galhos retornaram ao seu balanço suave e as folhas, tranquilamente, subiram para seu lugar de origem.
A música recomeçou. As árvores balançavam, e nós cantávamos, dançávamos e batíamos palmas.
Lifo segurou minha mão direita e o moço minha mão esquerda.
Caminhamos por um tempo assim, de mãos dadas, conectados num mesmo sentimento, como se fossemos um.
Levaram-me até a escada de estrelas que se formavam novamente. Lifo disse:
- Seu tempo acabou. Mas voltarás.
O moço:
- O lobo retornará. Não conseguiremos salvar todas as árvores, infelizmente. Não é todas que possuem raiz forte o suficiente.
Eu disse:
- Ele nunca vai morrer?
- Não pode. Vimos apenas um de uma alcatéia.
- E o que podemos fazer?
- Protegemos e guardamos. Um dia ele retornará para seu lugar de origem
- Agora tem que ir. A escada estará sempre ligada a você.
- Estou contigo. - disse o moço.
- Estou contigo. - disse Lifo.
- Estou contigo. - disse eu.
E desci os degraus de estrelas que iam se esvaindo sob meus pés.

sábado, 24 de outubro de 2009


Uma aura azul predomina na Esquina.
Um aroma de magia - você deve conhecer - começou a chegar a meus pulmões.
Através da aura percebo surgir uma figura, caminhando em minha direção. Aos poucos distingo ser um bobo da corte. Alto. Com uma linda roupa dourada. A face toda branca com detalhes dourados e aquele chapéu com bolas que todo bobo carrega consigo.
Trazia nas mãos uma linda bola daquelas grandes e coloridas. Segurava-a com muito cuidado. Às vezes a acariciava. Tinha muita estima pela bola.
Sentou-se ao chão, cruzou as pernas e ficou a contemplar a bola. Sorria. Contemplava.
A bola passou a espagir-se. Espargiu, espargiu até que expluiu!
BUM!
Retalhos coloridos espalharam-se pelo ar e ficaram a flutuar.
A bola revelou ter em seu interior um lampião. Apagado.
Ao contemplar aquele lampião o bobo levantou!
Lançou um olhar aflito.
Passou a correr em torno do lampião.
Correu muito.
Parou. Descansou.
Voltou a correr.
Estava nessa corrida quando entre os retalhos coloridos que ainda flutuavam, surgiu um homem. Seus olhos encontravam-se vendados. Vestia uma longa bata preta e carregava na mão esquerda um singelo baú.
- Alguém pode me ajudar? - disse o homem.
- Me diz nobre senhor do que necessitas.
- Esse baú precisa se abrir. E para isso preciso encontrar o bobo da corte.
- Infelizmente não posso te ajudar. Não sei da existência de nenhum bobo aqui nas redondezas. Mas veja bem, eu carregava uma bola que desistiu de existir e mostrou carregar em seu interior um lampião apagado.
- Um lampião? O que seria um lampião?
- Não sei te explicar. Um lampião é um lampião. Quem sabe se o tocar poderá imaginar sua forma.
O bobo segurou as mãos do homem. Encaminhou-as em direção ao lampião. Percorreram, exploraram, sentiram.
- Que forma engraçada possui seu lampião.
- Não é meu. É da bola.
Ambos encontravam-se sentados carregando seus respectivos objetos.
- O que é um bobo da corte? - perguntou o bobo.
- Me disseram que eu saberia quando o encontrasse. Que todo bobo tem magia, fascínio e carrega consigo a verdade.
- Vamos continuar sentados. Quem sabe passa um bobo por aqui.
- Já estou cansado de minha viajem. Irei repousar. Mas fique atento por mim. Se algum bobo aparecer me chame.
O homem se deitou.
O bobo o observava ressonar.
Colocou seu ouvido sobre o coração do homem.
Assustou-se.
Repetiu. Dessa vez manteve-se com o ouvido, como tentando decifrar o som interno. Num repente levantou-se e levou a mão até o seu peito.
Nada.
Nenhum som.
Silêncio total.
Vazio.
Olhou para o lampião. Para o homem. Lampião. Homem.
Abaixou-se, abriu a tampa do lampião e emitiu um leve sopro.
O lampião acendeu. Uma chama viva. Resplandecente. E a aura levemente passou do azul para o escarlate, sendo possível contemplar sobre o chão alguns caixotes.
Caixotes de cores variadas. Vermelho, verde, marrom, roxo... Exatamente seis caixotes.
O bobo retirou uma bola de seu chapéu. A bola roxa. A levou até a caixa da respectiva cor. E assim fez com cada bola de seu chapéu, restando apenas uma.
Quando completou a tarefa o primeiro caixote se abriu. De dentro saiu um Rei. Vestindo um lindo manto e portando uma majestosa coroa.
Do segundo uma Rainha. Com o mesmo manto, no entanto com coroa diferente, um pouco menos majestosa.
Do terceiro um Bispo. Um Bispo velho e sereno.
Do quarto um cavalo. Forte e negro.
Do quinto ergueu-se uma torre de pedras cinzentas e pesadas.
Do sexto, finalmente, um peão. Carregando chapéu, laço e calçando - claro - botas.
- Ó Rei, vive para sempre!
O Rei deu um passo em sua direção.
- Carrego comigo um lampião e tenho como companhia um mortal com olhos vendados.
- Não me deve explicações Bobo. Deve apenas divertir-nos.
Nesse momento iniciou-se uma música (leitor nesse momento solicito ouvir a melodia sugerida e prosseguir a leitura: http://www.youtube.com/watch?v=8PQsRH3GSdU).
A Rainha fixou o olhar no bobo. Caminhou até ele. Deixou cair seu manto. E juntos travaram uma dança. Uma dança quente. Onde era possível observar fagulhas de um olhar para o outro.
Mãos deslizavam.
Pernas subiam.
O ar se enrubesceu ainda mais.
Os retalhos coloridos desapareceram.
Até que a música foi interrompida por um estrondo.
Todos se voltaram e contemplaram a torre ruir sobre o Bispo.
Pedras rolaram para todos os lados e o corpo do Bispo tombou sobre o chão.
O peão abaixou a cabeça, segurou o chapéu contra o peito e voltou para sua caixa.
O cavalo relinchou e num impulso saltou sobre a rainha e o bobo. Saltou três vezes. No terceiro salto paralisou no ar. E assim permaneceu.
A rainha removeu o chapéu do bobo. Abriu sua cabeça. E naquele vazio e escuridão pôs o lampião. Voltou o chapéu.
Caminhou até o Rei. Este se prostrou a seus pés em ato de reverência.
Estralou os dedos.
O cavalo lentamente retornou ao chão, caminhando até seu caixote, seguido pelo Rei e pela Rainha.
Aos poucos a luz azul retornou.
O bobo caminhou em direção ao homem.
- Desperta-te.
O homem aturdido sentou-se.
O bobo então retirou a venda de seus olhos.
O homem contemplou o baú e o abriu. De dentro saltaram penas coloridas. Saltavam e retornavam. Ficaram nesse movimento constante e o homem observava admirado.
- Já não preciso da bola e carrego o lampião.
O homem o observou, sem entender.
- Partirei e deixarei contigo a última bola de meu chapéu.
Retirou-a e a depositou próxima ao homem.
Lentamente partiu.
Saltar. Retornar.
Assim continuavam as penas. Até que entediado fechou o baú.
Olhou para o vazio.
Levou a mão até o peito.
Nada.
Nenhum som.
Oco.
Olhou para a bola depositada ao seu lado que começou a encher-se e a colorir-se.

domingo, 13 de setembro de 2009

Recordo-me de tudo iniciar-se numa tarde ociosa na Esquina.
Meus olhos abriam e fechavam pesados. O corpo langoroso, não emitia movimento algum. O único movimento existente era sentido em meu interior, onde sangue e coração exerciam seus respectivos trabalhos.
Viram a esquina duas figuras: uma cigana e um anão. A primeira, alta, morena, com longos cabelos da cor do ébano e grandes olhos azuis. Trajava um longo vestido vermelho e um xale verde. Não carregava jóia, mas um singelo pandeiro.
O anão com roupas de feitio simples, calçava uma bota de tecido e trazia consigo um bandolim.
Passaram por mim e pararam. Olharam entre si. O anão pegou seu bandolim e passou a executar uma graciosa canção, logo seguido pelo pandeiro. Retornaram sua caminhada, agora tocando. Despertada de meu ócio, levantei-me e meus pés como por encanto, passaram a dançar. A cigana virou e sorriu. Chegou-se a mim e juntas, caminhávamos e dançávamos.
Chegamos frente a um campo repleto de trigo. Meus olhos extasiaram-se com o dourado emanado pela plantação.
- Descalça teus pés! - ordenou o anão.
Obedeci.
Adentramos.
Meus pés revolviam a terra macia. E quando retomamos a caminhada os trigos começaram a balançar e emitir uma música suave. Conforme passávamos, inclinavam-se em gesto de reverência.
Quando passamos toda a plantação deparamos com duas cachoeiras. De uma jorrava água e de outra fogo.
Muitos animais as circundavam. Esquilos, raposas, castores, leões, tigres, camelos, elefantes, pássaros - e aqui leitor, adicione de sua imaginação quantos animais quiser. Eu observei estes.
Todos se prostraram em reverência.
Caminhamos até uma caverna entre as duas cachoeiras. Ali havia um vento forte e incessante e meus pés sentiam a textura de uma terra extremamente macia e quente, mas não queimava.
Deparamos com uma grande pedra. Nessa pedra havia uma fenda onde notei algo escorrendo.
- Prove! - disse o anão.
Aproximei-me e passei os dedos no líquido. Levei-o a boca. Era mel. Quando passou por minha garganta senti meu coração aumentar sua frequência. Meu corpo era preenchido pelo som de suas fortes batidas. Temi.
- Não temas. Seu corpo há de se acostumar.
Saímos da caverna. Os animais continuavam em seus postos.
- Nessa tarde iremos recebê-la entre nós.
Ele olhou para a cigana e continuou:
- Já sabes o que deves fazer.
Fui conduzida pela cigana a um estábulo. Ali estavam três cavalos: um branco, um negro e outro castanho. Todos vistosos e lustrosos.
- Escolheis um.
- Não o sei como fazer.
- Passarás a noite com eles. Quando amanhecer deverás ter escolhido um.
Retirou-se.
Sentei-me sobre o feno. Um pequeno lampião nos iluminava. O cavalo negro se aproximou e disse:
- Se me escolherdes não irá arrepender-te. Sou forte como um touro e valente como um leão.
Logo após chegou o branco.
- Não escutes o negro. Ele esquece que além de força e valentia faz-se necessário a inteligência. E isso só eu possuo. Se me escolherdes não irá arrepender-te.
O castanho não se aproximou. Apenas mantinha seus olhos fixos em mim.
Deitei-me sobre o feno e não percebi quando meus olhos se fecharam.
Acordei no meio da noite sentindo o ar gélido invadir o estábulo. Meus dentes tremiam. O cavalo castanho se aproximou.
- Peço licença. - deitou e encostou-se em mim.
Aos poucos seu corpo quente me aqueceu e voltei a dormir.
Quando senti os primeiros raios de sol invadir as tábuas do estábulo, abri meus olhos. Ao meu lado havia uma maçã.
- Espero que gostes de maçã - disse o cavalo.
Sorri e dei uma dentada na suculenta maçã.
A cigana entrou.
- Já escolhestes?
- Sim. O castanho será meu companheiro.
- Como quiserdes.
Saímos do estábulo. Todos nos esperavam.
- Entenderás sua missão no caminho. Estaremos esperando-os. Leve consigo essa pequena adaga e essa garrafa de vinho.
Agradeci e retirei-me caminhando ao lado do cavalo.
Ele me conduziu. Diante de nós surgiu um vasto campo e muitas montanhas ao fundo. O sol brilhava e o céu era límpido de um azul vivo.
Paramos frente a um lago. As águas começaram a agitar-se.
- Suba em mim. Aconteça o que for não solte de minha crina.
Quando sua pata encostou-se às águas do lago estas aumentaram seu movimento. Começaram a levantar ondas que nos encobriam. Minhas mãos suavam e eu sentia seu corpo tremer. O barulho era ensurdecedor e tudo parecia girar. O agito multiplicou-se. Ele continuava caminhando bravamente.
De súbito a água esquentou. Muito. Lágrimas começaram a escorrer de seus olhos. Mas continuava bravamente. Aos poucos a temperatura foi decaindo. Decaiu. Decaiu. Congelou.
Impossibilitado de continuar ele estagnou. Tentava forçar as patas, mas estas se encontravam imóveis.
Queria ajudá-lo e não sabia como. Fechei meus olhos. Respirei fundo. Lembrei-me do vinho. Abri a garrafa e derramei o líquido sobre o gelo. No mesmo instante o gelo derreteu e o lago ficou como antes. Tranquilo.
Ele levantou-se e de júbilo relinchou.
Saímos do lago e seguimos nossa caminhada.
Deparamo-nos com um bosque. Um bosque de espinhos. Grossas árvores cobertas por espinhos.
Aquilo machucava. Feria. Rasgava nossa pele. O sangue escorria, misturado com o suor do sofrimento.
- Não solte de minha crina.
- Não soltarei.
- Confia em mim?
- Com minha vida!
- Então feche os olhos.
Fechei.
Seu corpo abaixou-se. Senti passar sobre nós algo grande e frio. Arrepiei-me. Um calafrio me dominou.
Passou.
Quando levantou perguntei:
- Porque paramos?
- Não era tempo de continuar. Observe.
Quando levantei meu olhar, notei que três serpentes deslizavam ao longe.
O bosque havia chegado ao fim.
Quando saímos, seu corpo tombou.
Assustada, inclinei-me sobre ele e notei seus olhos se fecharem. Coloquei meu ouvido sobre seu corpo. O coração havia parado.
Comecei a chorar. Sentia-me sozinha. Perdida.
Algo se aproximou. Era o cavalo negro.
- Vem comigo. Sou forte e valente.
- Retira-te daqui. Não te escolhi eu. Aparta-te.
Levantei-me, cansada e machucada. Precisava fazer algo. Notei que próximo a nós havia uma pequena fonte de água cristalina. Caminhei até ela e com as mãos em concha comecei a trazer água e limpar seus ferimentos.
Limpei todo o sangue e suor. Quando terminei a fonte secou.
O véu da noite estendeu-se sobre nós.
Percebi que sua respiração voltou. Mas seus olhos não abriram. Exultante o observava.
Seu corpo começou a tremer. Percebi que estava frio. No entanto me encontrava quente. Encostei-me a ele e nossa temperatura igualou-se.
Quando o sol completou seu ciclo e reapareceu, ele encontrava-se em pé.
- Podemos continuar.
O campo estendia-se a nossa frente. Avistamos ao longe um carvalho. Aproximamos.
- Chegou o momento final - notificou-nos o carvalho - No entanto, apenas um poderá continuar. Escolham qual irá retornar e com a adaga que trouxestes retirará a vida do qual decidir aqui permanecer.
- Mata-me! Já a ajudei chegar ao fim e já vivi por muito tempo. Não necessito viver mais.
- Nunca! Como matarei um ser que tanto me ajudou? Retira senão a minha vida e retorna para seu povo.
Ele fechou seus olhos e aproximou sua cabeça a minha. Senti que precisava fechar os meus também. E assim fiz.
Naquele momento comecei a ouvir seus pensamentos.
"Como saberemos se o carvalho nos diz a verdade? Porque haveríamos de tirar a vida do outro se iniciamos juntos essa jornada?"
Naquele momento entendi o que precisava fazer.
Segurei minha adaga e num impulso feri o tronco do carvalho. Ele tombou.
As cachoeiras surgiram novamente.
A cigana.
O anão.
Os animais.
- Bravo! Bravo!
- Já podes tornar-se integrante de nosso Reino. - disse a cigana. Ela me guiou até a cachoeira de fogo e disse:
- Adentra-te.
Emergi meus pés e fui caminhando até emergir totalmente e o fogo cobrir minha cabeça. Sentia meu corpo queimar, porém sem me ferir.
- Volta-te e faz o mesmo na água.
Assim o fiz.
Quando saí, o anão caminhou até eu e o cavalo com uma corda nas mãos. Abaixou-se e amarrou-a em sua pata e depois em meu tornozelo.
- Serão eternamente únicos. Você dele. E ele seu. Ambos um.
A cigana agitou seu pandeiro. O anão dedilhou seu bandolim e retomaram a música que me conduziu aquele lugar.
Todos travaram uma bela dança.
Percebi que a corda havia desaparecido. E o cavalo também. Mas sentia sua presença dentro de mim.
Era momento de retirar-se.
Com lágrimas na face parti por entre o campo dourado carregando o significado daquela missão.
Calcei meus sapatos.
E o sol se pôs na Esquina.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Deitada sobre o pesado cimento da calçada da Esquina, sinto meu corpo molhar-se. Espantada, assento-me e percebo que a calçada encontra-se molhada.
Num repente observo uma gota de água escapulir do cimento e subir em direção ao céu.
Inúmeras gotas começam a escapar do cimento elevando-se ao firmamento e gradativamente formando uma espessa camada de nuvens. Um verdadeiro espetáculo “anti-gravitacional”. Sobem como em câmera lenta, sendo possível observar saírem do solo e estourar, de encontro as inúmeras nuvens já existentes.
As gotas cessam.
As nuvens descem. Descem morosas formando degraus. Precisamente sete degraus.
Levanto e caminho em direção ao primeiro degrau. Galgo todos os sete. São deliciosamente macios.
Chego ao topo.
Aos meus pés, nuvens. Sobre minha cabeça há um movimento incessante de folhas. Folhas secas como as de Outono. Farfalham e fazem um movimento circular.
Ao centro das nuvens jaza uma frondosa árvore pejada de limões. Limões verdíssimos e grandiosos.
Um dos galhos sobressai. Abaixo dele encontra-se um trono. Um trono forrado com veludo verde e com delicadas figuras de anjos e querubins esculpidos sobre o ouro que o reveste.
Assentada sobre ele, está uma mulher trajando um longo vestido nunca por mim visto antes. Este é de um tecido transparente, sendo possível notar seu corpo sob ele, mas dominado por inúmeros tons de verde.
Sua cabeça carrega uma graciosa coroa confeccionada por galhos entrelaçados. É uma Rainha. Encontra-se imóvel e parece não notar minha presença.
Um limão cai.
As folhas cessam seu movimento sobre nós.
A Rainha levanta de seu trono e caminha em direção ao tronco da árvore. Toca-o com o dedo indicador. O tronco abre uma fenda e da mesma emana um líquido pastoso também verde. A rainha retira o líquido e o passa sobre seus lábios. Volta a sentar-se.
O movimento das folhas retorna.
Outro limão cai.
As folhas novamente cessam seu movimento.
Por dentre as folhas sai uma graciosa mulher. Possui pequenas asas. Parece ser toda feita de folhas secas. Possui traços delicados, no entanto não possui braços e nem mãos.
Ela desce.
Caminha em direção a árvore ignorando a presença da rainha.
- Aqui têm cheiro de limão.
Abaixa-se e senta ao lado do limão derrubado.
- Gostas daqui?
...
- Onde habito nada cai. Tudo flutua. Sempre.
...
- Nunca provei um limão. Não possuo mãos, como pode observar, impossibilitando-me de apanhá-lo.
...
- Gostaria de ter mãos. Com dedos. Como as de sua Rainha.
...
- Você não pode voar? Imagina se ao invés de cair você voasse? Seria agradável ver limões voando.
O tronco da árvore emite um gemido. Aos poucos saem dedos, mãos e braços. Caem ao chão. O tronco se fecha.
A mulher levanta-se e caminha até eles. Estes voam e encaixam-se em seu corpo.
Desajeitada com seus novos membros, ela abaixa e apanha o limão.
Observa-o atentamente.
Inspira seu aroma. Expira.
Aperta-o entre os dedos, sentindo sua textura.
Leva-o a boca dando uma grande mordida.
Ao começar a mastigar a mulher cai ao chão, de joelhos.
As folhas cessam novamente.
Escorre um filete de sangue que parece sair das asas da mulher. O pequeno filete começa a aumentar. Aos poucos o chão até então alvo, torna-se escarlate.
Suas asas caem.
- Não - ela diz gritando - não gosto de limão!
As folhas secas desaparecem e as da árvore começam a cair lentamente.
Quando todas já estão ao chão, a mulher estoura e vira uma poeira marrom.
A Rainha, até então imóvel, levanta-se de seu trono.
Caminha até o limão. Leva-o em direção a boca. Quando toca seus lábios, a fruta restitui-se a forma original, como se nunca tivesse sido provada.
A Rainha abre sua mão e o fruto levita ao seu lugar original.
Ela caminha até as asas enodoas de sangue. Retira sua veste e as colocam sobre suas costas.
Sobre nós desce um vendaval, levantando todas as folhas.
Quando o vendaval cessa o chão volta a ser alvo.
A árvore encontra-se frondosa.
O trono vazio.
Sua Majestade encontra-se paralisada. Morta.
Seu corpo é engolido pelas nuvens.
A raiz começa a emitir um movimento. Seus galhos começam a balançar. A árvore inteira abre-se ao meio e de seu interior, uma Rainha - sem asas - caminha em direção ao trono. Possui os mesmos traços e trajes da anterior.
Senta-se sobre o trono.
As folhas secas retomam seu incansável ciclo.
O chão treme.
As nuvens transformam-se em gotas.
E junto com as gotas, retorno a calçada da Esquina.

sábado, 5 de setembro de 2009

É por - do- sol na Esquina. O sol dilui-se sobre o cimento. Calmo. Lento. Preguiçoso. Majestoso.
Como um menino espreguiça seus braços lânguidos. E suas línguas de fogo esvaem-se.
Sobre ele noto um pequeno borrão que gradativamente aproxima-se.
Aproxima-se.
Aproxima-se.
É um balão. Imenso. Grandioso e magnífico como são os balões. Emana certa magia. E esse não era diferente. Negro e com estrelas douradas o circundando.
Desce tranquilamente pousando sobre a Esquina.
Paira uma atmosfera de mistério.
A noite cai sobre nós.
Escuto o ruído de uma porta. É a porta do balão se abrindo.
Abre totalmente.
Curiosa caminho até ele. Mas é impossível enxergar algo.Está tudo negro.
Adentro o balão. A porta se fecha com um estrondo.
Aos poucos surge uma luz. Fraca. E passo a passo observo nascer o sol. Uma grande claridade agora me preenche.
Não é o sol de todo dia. É mais forte. Impactante. Mágico.
Aspiro. E sinto um doce cheiro de baunilha penetrar por minhas narinas.
Aos poucos abro meus olhos até então semi cerrados. E percebo que estou sentada na orla de uma praia.
Sinto a areia sob meu corpo. Uma areia fina, delicada e cândida. Meus sapatos desapareceram. E meus pés deliciam-se em penetrar meus dedos na areia e emergir novamente.
Atrás de mim escuto o burbúrio das ondas. Viro-me e contemplo o mar. Pomposo e num tom de esmeralda. Levanto-me e caminho até ele. Deixo as ondas baterem em meu tornozelo. Batem e voltam. Sempre. Num ritmo constante.
Me encontro embevecida com toda essa maestria quando escuto o som de um trotar.
Olho e vejo passar um unicórnio. Um lindo unicórnio, diga-se de passagem. Vermelho e com chifre de mármore. Ele para. E olha para mim curioso.
Ele abre sua boca e emite palavras por mim desconhecidas. Palavras que me cutucam. Que me preenche mesmo sem eu entender. Palavras que fazem meu corpo mortal tremer e temer.
Ao notar que não entendo sua linguagem, ele caminha até mim. Inclina sua cabeça e toca seu chifre em minha testa.
- Agora podemos conversar. Você irá me entender.
Sorrio.
- Quem é você? De onde vem?
- Sou uma humana. Viajante. Venho da Terra.
- Interessante. Poucos terráqueos nos visitam. Como conseguiu chegar até aqui?
- Através de um balão que pousou em minha Esquina Surreal.
- Você encontra-se em uma ilha.
Só então observo atrás da praia, se estender uma sutil vegetação. Algumas árvores e muitas flores forrando o chão. Descobri a origem do odor de baunilha.
- Posso conhecê-la?
- Sim. Precisamos descobrir o motivo de sua vinda. E só adentrando ao jardim iremos descobrir.
Retiro-me do mar. Ele se abaixa e diz:
- Pode subir.
- Não irei te machucar?
- Apesar de parecermos frágeis, somos como de rocha interiormente.
Subi.
Cavalgamos em direção as flores.
Passamos por árvores de variadas formas e tamanhos. Algumas por mim já conhecidas, outras nunca vistas.
Flores rasteiras, flores altas que subiam por entre as árvores e seus troncos. O jardim parecia ser infinito.
Estava contemplando um espetáculo de cores. E o cheiro. Forte e doce.
Caminhamos por muito tempo. Enquanto caminhávamos o unicórnio cantava. Não consegui entender seu canto. Mas era belo. Belíssimo. Ouso dizer sublime.
Estávamos assim, quando encontramos uma cerca de madeira. Simples. Tosca. Ela abriu sozinha, dando passagem a nós.
Era um caminho. Um caminho rodeado por árvores semelhantes aos salgueiros. No chão havia pedras. Brilhantes. Diamantes. Era um caminho plano.
O unicórnio parou de cantar.
Chegamos frente a uma mesa do mesmo material da cerca. Sobre ela haviam três taças de ouro. Do mesmo tamanho. De uma mesmíssima dimensão.
O unicórnio abaixou e eu desci.
Quando desci, ele dobrou suas patas, e ficou como de joelhos, sobre o chão. E eu entendi que precisava fazer o mesmo.
Estava diante de algo muito grandioso.
Ficamos assim. Silêncio.
Até que vi um pássaro descer. Um pássaro grande semelhante as fênix. Era dourado.
Desceu e pousou sobre a mesa.
Ao pousar dobrou suas patinhas ficando como nós, de joelhos.
Do alto desceu um clarão. Após o clarão um facho de fogo. Caiu primeiramente sobre a taça do meio. Depois sobre a taça da direita. E seguiu a da esquerda. Subiu novamente. Só então notei que o fogo havia descido do sol.
O pássaro levantou-se. Colocou seu bico pontudo dentro da taça do centro e bebeu do seu líquido interior. Fez o mesmo com a taça da direita e logo após com a da esquerda.
Ao pousar a última taça sobre a mesa o pássaro deitou-se sobre a mesa.
O clarão retornou. Dessa vez sobre o pássaro. Este último levantou-se. E começou ali uma transfiguração. Das patas nasceram pernas. Das asas braços.
O pássaro transformou-se numa criança. Pequena e alva. Encontrava-se nua. Mas para estar ali era preciso estar assim.
A criança caminhou até nós. Contemplou-nos e emitiu o sorriso. Um sorriso amplo e sincero. Extremamente sincero, como só as crianças conseguem emitir.
Passou suas mãozinhas sobre meu cabelo. Ao tocar-me meu corpo estremeceu e senti-me estagnada. Paralisada. Uma sensação de paz me invadiu. Não sentia nada. Nem mesmo as batidas de meu coração.
Ela retirou sua mão depressa. E a pousou sobre o unicórnio. Travaram um canto. O mesmo canto. Como se fosse ensaiado. Havia sons de violinos e flautas. Até hoje desconheço a origem.
Retirou a mão do unicórnio e virou-se. Caminhou novamente até a mesa. E subiu. Voou.
O unicórnio me tocou com o chifre. Entendi que precisávamos nos retirar. Subi.
E voltamos pelo caminho dos diamantes. Ao chegar à cerca paramos. O unicórnio abaixou e abocanhou um pequeno diamante.
Passamos pelo jardim. E chegamos novamente à praia.
Desci. Ele colocou o diamante na areia.
- Vire-se.
Obedeci. E com o canto dos olhos observei o unicórnio quebrar o diamante em sua boca. De dentro escorreu um líquido transparente e límpido. Ele soltou o líquido sobre meu cabelo. Escorreu e senti um gostoso arrepio me invadir.
- Sua viajem termina aqui Terráquea.
- O que te digo?
- Nada. Encontrar-nos-emos novamente.
E com o mesmo trotar que chegou se retirou.
A claridade diminuiu gradativamente. A noite voltou.
Retirei-me do balão. Sentei sobre a calçada da Esquina com aquela sensação inefável e inexprimível me dominando.
E observei o balão voar, despedindo-se da Esquina.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Uma fita amarela voa. Uma fita amarela como queira imaginar.
Ela pousa sobre a calçada da Esquina.
- Cadê minha fita amarela? - diz uma voz masculina aguda.
Adentra a cena, esbaforido, um palhaço. Alto, com roupas coloridas, uma cartolinha marrom na cabeça. Possui pequenos tufos laterais de cabelo laranja. Segura um imenso guarda-chuva, enrolado, também colorido. Sapatos também imensos e - que interessante! - esse palhaço tem algo diferente dos demais: possui quatro mãos. Sim, duas mãos como as nossas e logo abaixo mais um par de mãos. Par de mãos superior, par de mãos inferior.
Ele tromba com uma menina.
Menina de cabelos ruivos, preso com um imenso laço azul. Vestido rendado e sapatos de verniz. Tudo azul. E uma pequena boneca de pano, presa em seus braços.
Trombam.
O palhaço cai e a boneca voa.
A menina o olha com pavor em seus olhos. Sim é visível o medo que invade suas entranhas.
- Menina você viu uma fita amarela? - diz apoiando-se sobre as mãos inferiores para levantar.
A menina apenas olha, não conseguindo ocultar seu temor.
- Você... Você derrubou minha boneca!
- Eu apenas quero minha fita amarela que voou para este lado!
A menina se ajoelha em direção à boneca. Segura delicadamente em suas mãos.
- Não chora. Mamãe chegou. - Embala a boneca - Shiuuu! Está tudo bem... Eu estou aqui!
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
O palhaço encontra sua fita amarela.
- Achei!
- Silêncio! Ela não pode te ouvir senão chora. Não se aproxime dela!
- Espere... Sinta... Está chovendo!
- É bom que chova! Quem sabe os pingos te molham e te apagam daqui! Já ficou muito tempo nesse lugar. Esse lugar não te pertence! Isto (aponta o guarda-chuva) não te pertence! Nada te pertence!
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
O palhaço abre seu guarda-chuva.
- Veja, eu sabia que choveria. Você, no entanto, não. - Sai saltitando e cantalorando.
- Prefiro não saber mesmo. Abomino o previsível.
Ele para.
Caminha pé ante pé em direção a uma pequena pedra. Uma pedra cinza e chata.
- Menina! Um achado!
Ela olha.
- Uma pedra. O que poderá fazer com uma pedra?
- Poderei concertar meu carro. Era exatamente esta a parte que faltava.
- Como se pode concertar um carro com uma pedra?
- Disso eu entendo muito bem. Vou guardá-la comigo.
Segura a pedra com sua mão esquerda do par de mãos inferior.
- E sua fita amarela? Já a encontrou?
- Sim. Já está comigo!
- Tem certeza?
- Não podemos ter certeza de nada. Apenas acreditar. E eu acredito que esteja.
A menina levanta.
- Parou a chuva.
- Pra mim ainda não. Sinto pesados pingos cair sobre meu guarda-chuva.
- Estás louco!
- Quem não está?
- Prefiro pensar assim. É mais confortável.
- De conforto estou carregado. Prefiro sentir feridas, espadas e lanças. Nada temo.
- És um palhaço imortal?
- Posso te dizer que sim. Na vida já passei e me enfadei. Nada de mortal me atinge mais.
- Lembrei de minha mãe. Ela dizia que se quiséssemos ser imortal era simples, bastava querer. Até hoje não entendo.
- Nem eu.
- Sua mãe te dizia isso? - diz a menina com espanto.
- Não. Mas a sua sim.
Pousa um silêncio. A menina deita e arruma sua boneca sobre seu braço direito. O palhaço vira seu guarda-chuva de ponta cabeça e senta sobre ele.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
- Parou a chuva.
- Sim. Prepare-se os peixes já chegam. Isso é certo: quando chove, eles chegam.
Passa sobre eles um cardume de lindos peixes dourados.
- Chegaram. Andam sempre em bandos.
- Temem a solidão. Sábios são. Solidão me enoja. Faz-me sentir fraca e impotente.
- Faz-se forte apenas quando estás acompanhada?
- Sim, por isso não perco minha boneca. Sem ela enfraqueço.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
Passam nesse momento três peixes: um vermelho, um verde e um lilás.
Travam uma linda dança. O peixe vermelho rodopia empolgado. O verde saltita pelo ar e o lilás apenas observa. O vermelho para, o lilás inicia. Gira em volta do palhaço e desce sobre a cabeça da menina. Sobe novamente.
O palhaço aplaude. Os peixes agradecem e retiram-se.
- Que bela dança - diz a menina - E sem música.
- Não ouvistes a música? Cada movimento era contemplado por uma belíssima canção!
- Não ouvi. Aliás, prefiro não ouvir. Música meche com a boneca. E a prefiro imóvel.
- Como és egoísta. Pensa por ti e por ela. Deixa a boneca pensar livremente.
- Ela não pode tomar suas próprias decisões.
- Como és tola menina.
Silêncio.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
- Já não passam mais peixes.
- E seu temor por mim também.
- Não sinto temor por ti. Sinto por ela. Ela não pode te conhecer.
- A chuva voltará. Vou me retirar antes que chegue.
O palhaço levanta e fecha seu guarda-chuva.
- Foi bom ter voado minha fita. Se não fosse por ela não teria encontrado a pedra.
Retira-se cantarolando.
A menina senta. Coloca a boneca sobre o colo.
- Não se preocupe. Se chover, te protejo.
Delicados pingos de chuva começam a cair.
- Voltaram! Será breve... Eu acho.
A boneca nesse momento pisca. E de sua boca sai uma fita amarela. Aquela que vocês imaginaram.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...