Era uma charmosa tulipa. Uma tulipa com asas. Desceu silenciosamente na esquina e pousou sobre meu chapéu.
- Posso descansar aqui?
- Mas é claro. De onde vens?
- Ora! Como és tola! Do meu passeio matinal!
- E porque o cansaço?
- Porque estou fugindo. Fugindo de uma garotinha que insiste em me perseguir.
(...)
- Olha, lá vem ela! Vou me esconder!
- Mamãe, eu a vi. Ela está aqui...
- Filha, não tenho tempo para brincadeiras! Já te disse: flores não andam em supermercados!
- Mas eu vi mamãe! Juro que vi!
Aproximam-se de mim.
- Por favor, moça do chapéu: você viu uma tulipinha vermelha com bolsinha amarela?
Estava pronta a responder quando entra correndo um gato com uma graciosa gravata borboleta e segurando uma caixa preta.
- Olá moça do chapéu. Posso sentar ao teu lado?
- À vontade...
O gato sentou, abriu a caixa preta e tirou dela um lindo saxofone dourado.
- Escutem essa valsa. Aprendi hoje.
A mãe e a menina sentaram junto de nós e o gato começou a tocar uma deliciosa melodia em seu sax. O som nos envolveu.
Estávamos ali, embevecidos na valsa, quando adentra uma bailarina.
Vem rodopiando, fazendo piruetas e dando risadinhas graciosas.
Saltitava e sorria.
Junto dela um acordeonista de cartola. Começou a acompanhar o gato em sua valsinha.
E a bailarina dançava.
- Mamãe quando crescer posso ser igual a ela?
- Mas é claro querida! Só precisamos mudar algumas coisas...
- Que coisas mamãe?
- Seu cabelo. Seus braços. Suas pernas. Seus pés. Ou seja, você inteira!
A menina rompe num choro. A música muda. Começa a ficar agitada. Violenta. O sax grita e o acordeom acompanha o choro da criança.
A bailarina se aproxima da menina e diz:
- Não chores. Talvez possamos dar um jeito nisso tudo.
- Que jeito? Eu não quero mudar!
- Não quer ser como eu?
- Sim.
Nisso a tulipa que permanecia escondida em meu chapéu, rompe a cena com um grito aterrorizado. A música cessa no mesmo instante.
- Porque quer rodopiar? Porque quer saltar? Porque quer rir com graça? Menina tola! Menina tola!
O gato que permanecia sentado levanta-se e diz:
- Tulipas por aqui não são bem-vindas!
O acordeonista aproxima-se e diz:
-Aproxima-te tulipa!
A tulipa voa até os ombros do acordeonista.
- Consegues daqui ver o mar?
- Não. Mas sinto o cheiro e a brisa.
- Vamos pra lá?
- Não posso. Preciso ajudar a menina.
- Leva ela também.
A tulipa vira para a menina e diz:
- Quer conhecer o mar?
- Não. Quero ser como a bailarina e bailarinas não habitam no mar.
A mãe que permanecia calada até então, diz:
- Eu quero ir ao mar.
- O mar não aceita mulheres como tu. Apenas as puras entram nele.
A bailarina ri estrondosamente e em meio ao riso debochado exclama:
- Teu mar é podre! Podre!
- Diz assim, pois lá já habitou. No entanto lá não podes retornar.
A bailarina começa a chorar. O gato ira-se.
- A fez chorar. Pagarás por isso!
A menina levanta-se e diz:
- Bela bailarina... Não chora. Se você chora eu fico triste.
- Não posso. Para meu choro cessar só há uma coisa a fazer.
- E o que é? Diz e farei!
- Tirar todas as pétalas da tulipa.
- Oh! Mas não posso. Ela é tão bela!
- Eu sabia, eu sabia! - E aumenta o choro e os soluços.
A menina caminha até a tulipa e diz:
- Tulipinha... Não posso ver a bailarina chorando. Fico triste também! Você me deixa retirar todas suas pétalas?
A tulipa olha ao acordeonista que diz:
- Se aceitar não poderá retornar ao mar.
A tulipa voa lentamente até o chão. Deixa a bolsinha em minhas mãos.
A menina começa então a tirar pétala por pétala. Cada pétala retirada é uma gota de sangue que vai ao chão.
Gradativamente o choro da bailarina começa a cessar.
E quando a última pétala cai ao chão, uma poça de sangue se formou. A bailarina dá seu último soluço e abre um sorriso.
- Vamos? Agora poderá ser como eu!
A menina então responde:
- Não irei bailarina. Não sou como tu. Fiz isso para teu choro cessar. Ele cessou. Prefiro continuar como menina.
- Como preferir! Encontrei melhores... Vamos gato, preciso de ti!
O gato coloca seu saxofone na caixa.
- Vem bailarina.
A bailarina entra na caixa e lentamente se dobra até ficar do tamanho do polegar de uma criança.
O gato fecha a caixa e retiram-se.
- E agora? - diz a menina - A tulipa virou uma poça de sangue. Há como desfazer?
- Infelizmente não. Ela aceitou fazer isso por ti. Mas você ainda pode vir comigo conhecer o mar.
- Aceito. Adeus mamãe.
A mulher nada responde. Apenas observa a filha desaparecer com o acordeonista.
Quando desaparecem, ela caminha até a poça de sangue, descalça os pés e os mergulha no líquido escarlate.
Os pés tornam-se raízes. O corpo um caule. E as pétalas ressurgem. As asas rasgam a costa.
- Pode devolver minha bolsa?