segunda-feira, 15 de novembro de 2010


Senti um pingo tocar meus cabelos. Tocou explodiu e escorreu. Quando escorreu, contemplei o líquido denso bater contra o solo.
Era uma estrela que gotejava pingos no breu.
Comecei a sentir uma ânsia para ajuntá-los. No começo consegui. Depois me frustrei. Eram muitos.
Caminhei e parei sob ela. Levantei as mãos em forma de concha e deixei um pingo escorrer na linha da vida. Percorreu do nascimento até o término e foi para o pulso, acompanhando uma veia saliente.
Era belo e opressor.
Quando a estrela terminou de pingar, as demais começaram a se alinhar. Formaram uma delicada escada e me convidaram e subir.
Conforme galgava os degraus, estes iam esvaindo de forma que quando ao topo cheguei, não havia mais traços de escada.
As estrelas desapareceram. Não havia luz nem som algum.
Caminhei pelo escuro.
Devagar. E confesso que temendo. Temendo o inesperado e imprevisível.
Tropecei.
Havia algo ali.
Um corpo talvez.
Com o tato notei ser um corpo pequeno. Não havia braços nele. Mas encontrei asas. Asinhas.
Seus pés eram estranhos. Quando toquei, fizeram me lembrar de pés de bode.
Respirava. Suave. Calmo. Morno.
- Olá. Consegue me sentir?
- Pouco.
Sua voz era rouca. Feminina.
- Porque tanta escuridão?
- Porque quer claridade?
- Gostaria de saber onde estou. Ver com quem falo.
- Talvez não seja a melhor opção. Pode sentir medo daqui. Por onde veio?
- Pelas estrelas.
- Se der cinco passos para a esquerda encontrará uma garrafa. E cinco passos para a direita uma pena. Escolha.
Levantei e caminhei para a esquerda. Pude sentir o vidro gélido tocando minha pele.
- O que faço com ela?
- O que faria com uma garrafa?
Tateei a garrafa e pude sentir uma rolha tampando-a. Retirei. No mesmo instante um odor ácido invadiu minhas narinas. Percorreu minhas entranhas.
Meus olhos lacrimejaram.
- Não as perca.
- Quem?
- As lágrimas. Coloque-as na garrafa.
Deixei pingarem ali dentro. Não lembro quantas foram exatamente.
- Agora despeje em minha asa.
Assim fiz.
Quando concluí, um clarão caiu sobre nós. O corpo levantou. E pude contemplá-lo finalmente. Possuía um rosto delicado, como de menina. Longas madeixas ruivas e um tom de pele também rubro.
E contrastando com a delicadeza, pequenos pézinhos de bode.
- O que você é?
- Sou Lifo, o guardião. Olhe ao seu redor.
Olhei e pude notar que estava numa clareira. Muitas árvores nos rodeavam. Árvores de variadas espécies.
Lifo caminhou até o centro da clareira. Agitou suas asas. Uma suave brisa tocou minha pele e começou a agitar levemente as folhas de cada árvore.
Quando todas as folhas estavam num balanço sutil, Lifo pisou com força três vezes na terra.
Iniciou uma música suave. Cada árvore fez uma reverência a Lifo. Quando a última árvore terminou sua reverência, Lifo travou uma bela dança. Saltitava e dava pequenos vôos embalados por aquele doce som.
De repente a música parou. A brisa ficou gélida. As folhas interromperam seu balanço.
Percebi um leve tremor no solo.
Lifo estagnou-se.
E observei aproximar de nós a figura de uma velha segurando um cajado. Ela possuía um tampão em seu olho esquerdo. Trajava-se com modéstia e caminhava com dificuldade.
A velha caminhou até a primeira árvore e bateu seu cajado no caule da mesma. No mesmo instante as folhas começaram a cair sob o solo e tornaram-se secas. Da mesma forma procedeu a velha com as demais árvores.
Até que o solo ficou coberto de folhas secas e todas as árvores com seus galhos expostos.
A velha caminhou até Lifo e disse:
- Observou o que fiz?
- Sim.
- São frágeis. Inúteis. Com o pouco que fiz já consegui abatê-las.
Nesse instante, caiu de Lifo uma pequena madeixa ruiva. Ele me disse:
- Pegue essa madeixa e distribua seus fios em cada árvore.
Obedeci.
Nisso pude notar um moço alto aproximando-se de nós. Tinha longos cabelos negros e olhos azuis. A pele branca e carregava consigo uma lâmpada a óleo.
Caminhou até nós.
Quando se aproximou de Lifo, fizeram uma reverência mútua e saldaram-se.
- Estou contigo.
- Estou contigo.
O moço caminhou em direção a cada árvore. Em cada uma delas deixava pingar um pouco do óleo da lâmpada na raiz. Três gotas. Após caírem as gotas deixava por sete segundos a chama próxima aos fios da madeixa de Lifo. Ao terminarem os sete segundos, uma chama suave iniciava no fio de cabelo que ali estava.
Quando o moço concluiu seu trabalho, voltou ao lado de Lifo.
O moço prostrou-se no chão, colocou a lâmpada já apagada em sua frente e disse:
- Se esta se acender as folhas voltarão. Se não acontecer, as árvores morrerão. - Disse e cerrou seus olhos. Balbuciava palavras por mim incompreensíveis.
Lifo estava concentrando, com os olhos também fechados. A velha começou a andar em círculo, rodeando as árvores. Batia violentamente com seu cajado em seus galhos, tentando quebrá-los. E gritava:
- INÚTEIS! FRACAS! COVARDES!
Algumas árvores deixaram cair pedaços do casco ao serem agredidas. Algumas derrubaram pequenos pedacinhos de seus galhos.
Observei que de uma árvore começou a escorrer um líquido denso e rubro. Era sangue. Escorreu pelos seus cascos enquanto a velha dava uma estrondosa gargalhada.
Quando o sangue tocou a terra, o moço começou a tremer e lágrimas começaram a escorrer de seus olhos. Mas ele sorria. Levantou e caminhou em direção a cada árvore batendo palmas. Nisso Lifo começou a entoar um canto. Um canto lindo, puro que começou a me preencher e fazer meu coração saltar. Meu corpo tremia e meus pés começaram a saltar. Comecei a dançar.
O moço batia palmas. Lifo cantava. E eu dançava.
Nisso caminhei até a velha e tirei o tampão de seu olho. Nada havia ali, apenas um buraco negro.
Caminhei até a lâmpada dei três palmas em cima dela e a chama voltou a se acender. Quando se acendeu, coloquei apenas uma gota dentro daquele buraco.
No mesmo instante a velha transformou-se num lobo negro. Correu desesperado uivando e gemendo afastando-se de nós.
Coloquei a lâmpada no meio da clareira.
A brisa recomeçou.
Os galhos retornaram ao seu balanço suave e as folhas, tranquilamente, subiram para seu lugar de origem.
A música recomeçou. As árvores balançavam, e nós cantávamos, dançávamos e batíamos palmas.
Lifo segurou minha mão direita e o moço minha mão esquerda.
Caminhamos por um tempo assim, de mãos dadas, conectados num mesmo sentimento, como se fossemos um.
Levaram-me até a escada de estrelas que se formavam novamente. Lifo disse:
- Seu tempo acabou. Mas voltarás.
O moço:
- O lobo retornará. Não conseguiremos salvar todas as árvores, infelizmente. Não é todas que possuem raiz forte o suficiente.
Eu disse:
- Ele nunca vai morrer?
- Não pode. Vimos apenas um de uma alcatéia.
- E o que podemos fazer?
- Protegemos e guardamos. Um dia ele retornará para seu lugar de origem
- Agora tem que ir. A escada estará sempre ligada a você.
- Estou contigo. - disse o moço.
- Estou contigo. - disse Lifo.
- Estou contigo. - disse eu.
E desci os degraus de estrelas que iam se esvaindo sob meus pés.