quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Uma fita amarela voa. Uma fita amarela como queira imaginar.
Ela pousa sobre a calçada da Esquina.
- Cadê minha fita amarela? - diz uma voz masculina aguda.
Adentra a cena, esbaforido, um palhaço. Alto, com roupas coloridas, uma cartolinha marrom na cabeça. Possui pequenos tufos laterais de cabelo laranja. Segura um imenso guarda-chuva, enrolado, também colorido. Sapatos também imensos e - que interessante! - esse palhaço tem algo diferente dos demais: possui quatro mãos. Sim, duas mãos como as nossas e logo abaixo mais um par de mãos. Par de mãos superior, par de mãos inferior.
Ele tromba com uma menina.
Menina de cabelos ruivos, preso com um imenso laço azul. Vestido rendado e sapatos de verniz. Tudo azul. E uma pequena boneca de pano, presa em seus braços.
Trombam.
O palhaço cai e a boneca voa.
A menina o olha com pavor em seus olhos. Sim é visível o medo que invade suas entranhas.
- Menina você viu uma fita amarela? - diz apoiando-se sobre as mãos inferiores para levantar.
A menina apenas olha, não conseguindo ocultar seu temor.
- Você... Você derrubou minha boneca!
- Eu apenas quero minha fita amarela que voou para este lado!
A menina se ajoelha em direção à boneca. Segura delicadamente em suas mãos.
- Não chora. Mamãe chegou. - Embala a boneca - Shiuuu! Está tudo bem... Eu estou aqui!
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
O palhaço encontra sua fita amarela.
- Achei!
- Silêncio! Ela não pode te ouvir senão chora. Não se aproxime dela!
- Espere... Sinta... Está chovendo!
- É bom que chova! Quem sabe os pingos te molham e te apagam daqui! Já ficou muito tempo nesse lugar. Esse lugar não te pertence! Isto (aponta o guarda-chuva) não te pertence! Nada te pertence!
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
O palhaço abre seu guarda-chuva.
- Veja, eu sabia que choveria. Você, no entanto, não. - Sai saltitando e cantalorando.
- Prefiro não saber mesmo. Abomino o previsível.
Ele para.
Caminha pé ante pé em direção a uma pequena pedra. Uma pedra cinza e chata.
- Menina! Um achado!
Ela olha.
- Uma pedra. O que poderá fazer com uma pedra?
- Poderei concertar meu carro. Era exatamente esta a parte que faltava.
- Como se pode concertar um carro com uma pedra?
- Disso eu entendo muito bem. Vou guardá-la comigo.
Segura a pedra com sua mão esquerda do par de mãos inferior.
- E sua fita amarela? Já a encontrou?
- Sim. Já está comigo!
- Tem certeza?
- Não podemos ter certeza de nada. Apenas acreditar. E eu acredito que esteja.
A menina levanta.
- Parou a chuva.
- Pra mim ainda não. Sinto pesados pingos cair sobre meu guarda-chuva.
- Estás louco!
- Quem não está?
- Prefiro pensar assim. É mais confortável.
- De conforto estou carregado. Prefiro sentir feridas, espadas e lanças. Nada temo.
- És um palhaço imortal?
- Posso te dizer que sim. Na vida já passei e me enfadei. Nada de mortal me atinge mais.
- Lembrei de minha mãe. Ela dizia que se quiséssemos ser imortal era simples, bastava querer. Até hoje não entendo.
- Nem eu.
- Sua mãe te dizia isso? - diz a menina com espanto.
- Não. Mas a sua sim.
Pousa um silêncio. A menina deita e arruma sua boneca sobre seu braço direito. O palhaço vira seu guarda-chuva de ponta cabeça e senta sobre ele.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
- Parou a chuva.
- Sim. Prepare-se os peixes já chegam. Isso é certo: quando chove, eles chegam.
Passa sobre eles um cardume de lindos peixes dourados.
- Chegaram. Andam sempre em bandos.
- Temem a solidão. Sábios são. Solidão me enoja. Faz-me sentir fraca e impotente.
- Faz-se forte apenas quando estás acompanhada?
- Sim, por isso não perco minha boneca. Sem ela enfraqueço.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
Passam nesse momento três peixes: um vermelho, um verde e um lilás.
Travam uma linda dança. O peixe vermelho rodopia empolgado. O verde saltita pelo ar e o lilás apenas observa. O vermelho para, o lilás inicia. Gira em volta do palhaço e desce sobre a cabeça da menina. Sobe novamente.
O palhaço aplaude. Os peixes agradecem e retiram-se.
- Que bela dança - diz a menina - E sem música.
- Não ouvistes a música? Cada movimento era contemplado por uma belíssima canção!
- Não ouvi. Aliás, prefiro não ouvir. Música meche com a boneca. E a prefiro imóvel.
- Como és egoísta. Pensa por ti e por ela. Deixa a boneca pensar livremente.
- Ela não pode tomar suas próprias decisões.
- Como és tola menina.
Silêncio.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...
- Já não passam mais peixes.
- E seu temor por mim também.
- Não sinto temor por ti. Sinto por ela. Ela não pode te conhecer.
- A chuva voltará. Vou me retirar antes que chegue.
O palhaço levanta e fecha seu guarda-chuva.
- Foi bom ter voado minha fita. Se não fosse por ela não teria encontrado a pedra.
Retira-se cantarolando.
A menina senta. Coloca a boneca sobre o colo.
- Não se preocupe. Se chover, te protejo.
Delicados pingos de chuva começam a cair.
- Voltaram! Será breve... Eu acho.
A boneca nesse momento pisca. E de sua boca sai uma fita amarela. Aquela que vocês imaginaram.
Dorme filhinha, mamãe já está aqui...

quarta-feira, 26 de agosto de 2009


Essa noite recebi uma ilustre visita na Esquina.
Um mago que chegou sobre uma balança. Uma balança constituída basicamente de cordas e madeira. Balançava sereno, como se nada de externo o afetasse.
Não chegou só.
Em seu colo repousava um gato. Um gato em tons de esmeralda.
Sobre seu pé apoiava-se um coelho. Um coelho com olhos grandes que nunca piscavam.
E em volta de seu pescoço, enrolava-se uma serpente.
Eram três conectados em um.
Balançavam serenos.
O mago sustentava uma expressão austera e de seu olho esquerdo via-se verter lágrimas. Lágrimas de sangue. Sangue denso e de um vermelho vivo.
Gotejava uma a uma sobre o cimento da calçada. E ao tocar o cimento, transformava-se em delicados cristais.
1 segundo.
2 segundos.
3 segundos.
PUF!
O cristal estourava.
Brotar.
Escorrer.
Pingar.
Transformar.
Estourar.
O balanço cessa.
O gato salta e caminha tranquilamente, em círculos. Dá três voltas em torno do mago e senta.
Brota.
Escorre.
Pinga.
Transforma.
Mas este não estoura.
O gato caminha até ele, coloca-o na boca. Leva para o mago. Este pega o cristal com ternura. Num impulso o arremessa contra o chão. O cristal parte-se em três.
O gato novamente caminha, agora em direção a uma parte. A primeira. Coloca-a na boca e a digere. Retorna para seu antigo posto, no colo do mago.
O coelho desliza pelos pés do mago em direção ao chão. Abocanha a segunda parte do cristal e caminha até o mago.
Este parte o cristalzinho em dois e penetra ambos nos respectivos olhos do coelho, que retorna aos pés do mago.
Agora a serpente. Desenrola-se do pescoço do mago e com suavidade segue em direção a terceira parte do cristal. Enrola-se sobre ele. Aos poucos se estica novamente.
Ao retornar para o pescoço do mago já não havia mais parte alguma do cristal.
Todos os olhares voltam-se para cima. Sobre nós descem dois astros.
Um grande e resplandecente de onde gotejam lavas.
O outro menor e opaco emitindo filetes de prata.
O mago levanta cada ser ali presente em direção aos astros.
Deixa gotejar na boca do gato um pingo da lava e um filete de prata.
Sobre os olhos do coelho, o mesmo. Lava e filete.
E sobre o corpo da serpente deixa escorrer lava e filete.
Voltam as suas respectivas posições.
Os astros partem.
O balanço suave retorna.
O mago emite um largo sorriso, seguido de uma estrondosa gargalhada.
E gargalhando desapareceu, devolvendo-me a solidão da Esquina.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Recolho-me na esquina meu canto predileto. E quando digo canto refiro-me ao canto musical que chega nesse momento aos meus ouvidos. Sobe pelo solo, atravessa a pesada calçada de cimento vermelho e finalmente chega aos meus ouvidos. Um canto longínquo, mas belo.
Num repente, o cimento vermelho modifica-se. Começa a transformar-se em relva, verde e fresca com o orvalho da manhã. Árvores surgem, das mais variadas espécies, pairando no ar um odor adocicado de frutas silvestres.
Quando dou por mim, estou na porta de um cogumelo. Sim, um imenso cogumelo com janelas e porta. A porta encontra-se aberta, me convidando para entrar.
Entro e caminho devagar, pois nunca tinha visitado aquele cogumelo antes. Outros sim. Aquele não.
Escuto vozes. Muitas vozes. E o canto, que não cessa e cada vez fica mais forte. Mais denso. Mais colorido, se é que você pode me entender.
Caminho por um longo corredor, iluminado apenas por um candelabro. A cada passo dado pareço estar mergulhando. E realmente, estou mergulhando. Meus pés sentem água. Uma água “alanrajada” e brilhante numa temperatura muito boa. Nem muito fria e nem muito quente.
Uma sensação de torpor invade meu corpo.
Meus pés param. Não obedecem mais ao meu comando. Sinto-me paralisada externamente, pois dentro de mim parece haver um terremoto.
Um tremor interno parte dos meus pés, percorre minhas pernas, tronco, braços, mãos, pescoço e finalmente a cabeça. Tudo para. O canto que escutava, agora parece estar saindo de mim. Sim, algo dentro de mim emite o canto. E ele sai.
Sai por meus poros. Cada poro emite uma nota daquele canto sublime.
Sinto tocarem minha mão. Quando olho, ao meu lado esquerdo está algo nunca visto antes. Não é homem. Não é mulher. No entanto, possui corpo e cabeça. Parece flutuar. Cabelos longos esvoaçam como se ali houvesse um grande vento. Ele toca minha mão e sou levada por ele passivamente ao fundo daquelas águas.
Caminhamos lentamente. Ele olha diretamente aos meus olhos, e sinto como se nos conhecêssemos a muito tempo. Sorri com brandura.
Percebo que estamos muito abaixo do nível da água, no entanto não está mais escuro. Está muito iluminado. E o canto agora me preenche. Carrega-me. Domina-me.
Paramos.
Sem me olhar, ele diz:
- Aqui flui a eternidade.
Sua voz ressoa alta e forte, como um trovão.
Olho a minha volta. O canto cessa.
- Você não pode entrar. Somente observar. E sentir. E acreditar. Aqui habita algo que seres racionais precisam desprender-se de sua racionalidade para entender. Irão sentir algo que nunca sentiram e em sua ânsia de querer entender e colocar significado em todas as coisas, acabarão estragando o lugar.
Continuamos a caminhar. Passamos por uma ponte, onde a cada passo dado sinto meus pés deslizarem por letras entalhadas em cedro.
"S"
"É"
"C"
"U"
"L"
"O"
"S"
"SÉCULOS".
- Não vamos sair da ponte, pois senão o que está desse lado nos dominará. Apenas observe.
Observei. Mas não era possível ver absolutamente nada.
Estava tudo negro, gélido e estagnado. O único movimento era emitido pela cabeleira do ser que me acompanhava.
Fixei meu olhar. Foi quando vários pontos começaram a surgir. Pontos brilhantes. Espera aquilo não eram pontos. Eram olhos. Vários olhares.
Fixos em mim. Em cada olhar era estampado o medo. Medo de algo.
- Esses vivem no assombro. São dominados pelo Nefasto. Muitos seres racionais preferem habitar esse lugar. Na verdade posso te dizer, a grande maioria. Como pode perceber deixamos livre. Colocamos dentro de cada ser o livre arbítrio. Cada um busca aquilo deseja. A ponte possui dois lados. É apenas questão de escolha!
- Agora observe embaixo da ponte.
Embaixo fluía uma neblina. Dessa neblina misturavam-se inúmeras cores. Cores nunca antes observadas e outras já existentes.
- Aqui observamos o pensamento dos seres racionais. As cores brilhantes são aqueles que conseguem desprender-se de sua racionalidade e achegar-se a nós. As cores intricadas são daqueles trancafiados em si mesmos, que não conseguem desprender-se de si mesmo. E outras cores seguidores de Nefasto. Existem cores repetidas, aliás muitas. E cores que nunca foram vistas antes.
De repente tudo parou.
- O cogumelo irá ruir. Não se preocupe. Estivemos, estamos e estaremos em todos os lugares, ao mesmo tempo. Esse foi apenas um portal. Leve consigo essa vela. Quando a chama se apagar nos encontrará novamente.
Minha visão tornou-se escarlate. Senti-me sugada por um vento muito forte e rápido, pois quando abri meus olhos estava na Esquina novamente. Segurava a vela muito forte a ponto de a cera escorrer em meus dedos.
Coloquei-a sobre a mala. A mala que chegou carregando a Vida.
Fechei meus olhos. Fora uma viajem longa. Meu corpo parecia cansado. Reclinei-me sobre o cimento e sorri. Meus poros aos poucos se fechavam, e percebi cada nota do canto maravilhoso esvair-se em direção a chama resplandecente da vela.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009


Na esquina Surreal, sento-me. Observo uma caixa pequena e retangular. Abro. Escapa um ar abafado. Dentro observo pessoas.
Muitas pessoas. A maioria com semblantes cálidos. Olhares fugidios. Cansadas talvez...
Um homem coça a cabeça. Uma criança chora.
Uma senhora quase escorrega, escorando-se em um jovem de mochila.
Uma mulher com semblante altivo discute com um pequeno aparelho. Não consigo entender qual o motivo da discussão.
Um aparelho pequeno. Tom de cinza. Ele abre e fecha.
Na frente da caixa retangular possui um homem, gordo e careca que parece guiá-los. Eles confiam no homem gordo e careca.
Escuto reclamações. Uns reclamam de a caixa estar lotada. Outros pelo atraso da caixa.
Começo a ler pensamentos.
Homem que guia:
"Como deixei pude não sair com a Laura ontem. Será que consigo hoje... Ela me pareceu brava. Mas acho que não, ela sempre me aceitou de volta. Não custa tentar... Na hora do almoço mandarei uma mensagem a ela.”

Mulher do aparelho:
"Canalha. Não pode puxar meu tapete assim! Vou mostrar a ele quem manda. Onde já se viu. Eu que dou duro o dia inteiro e a outra que é favorecida. Isso não pode acontecer! Não comigo!"

Enjôo de ler pensamentos. Sinto ânsia.

Outros tecem diálogos. Quem sabe seja valioso.

Aproximo na expectativa de entender o que dizem:

- Bom dia.

- Bom dia, tudo bem?

- Tudo. Hoje fez sol.

- Sim. Diferente de ontem que estava um pouco frio.

- Tem razão. O homem do jornal disse que amanhã terá um pouco mais de vento.

- Eu ouvi dizer mesmo.

...

- Está trabalhando naquele lugar ainda?

- Sim. Gosto de lá. E você, o que anda fazendo?

- Casei. Tive dois filhos.

- Verdade? Tenho três. Os seus dão trabalho?

- Não, ainda são pequenos.

- Então se prepare. Filho é despesa e dor de cabeça.

- Minha amiga me falou o mesmo.

- Bom, chegou o meu ponto. Aparece em casa.

- Eu vou sim. Mas vai você em casa também.

- Quando der eu vou sim. Até mais.

- Até.

Fecho a caixa num súbito. Sinto algo embolar dentro de mim e subir como fogos. Explode. Da minha boca saem estrelas coloridas.
Observo uma a uma cair ao chão.
O que fazer com elas?
Já sei! Quem sabe colocar dentro da caixa?!?
Coloco.
Todos observam.
Não conseguem entender de onde surgiram estrelas. Como não entendem, as ignoram.
Pisam nelas. Chutam-nas.
Retiro as estrelas coloco no bolso.
Quanto à caixa guardo num canto da esquina. Quem sabe um dia entenderei a espécie contida dentro daquela caixa.

"Nós, humanos, só conhecemos os rios na superfície. Os crocodilos os conhecem nas funduras. Nas funduras os rios são escuros e tranquilos como os sofrimentos dos homens. Essa eu não sabia, que os sofrimentos são escuros e tranquilos...
Aí ele diz uma coisa inusitada: que o rio é palavra mágica para conjugar a eternidade. Eu havia aprendido o contrário, que rio é palavra para conjugar tempo. Pelo menos foi assim que ouvi de Heráclito, o filósofo: "tudo flui, nada permanece, tudo é rio..."
Mas lendo as Escrituras Sagradas percebi que certo estava o João: "a eternidade mora no fundo das águas, no fundo do tempo".
Quando Deus quis fazer artes mágicas com Jonas, jogou-o no mar, onde um peixe o aguardava de boca aberta, e por três dias ficou na fundura das águas, como feto na barriga da mãe, até que se transformasse em profeta. O que não é muito diferente das metamorfoses que fazem um poeta - portanto confirmado pela Cecília Meireles e pelo T.S Eliot que afirmam que, para fazer poesia, é preciso ter olhos de peixe. Não é por acaso, portanto, que o ritual mágico para transformação do velho em criança, a que se dá o nome de "batismo", siga a metáfora do afogamento e do nascimento: o adulto é mergulhado, de corpo inteiro, nas águas de um rio: o velho que mergulha morre; a criatura que sai das águas é menino.
Não é por acaso, portanto, que o peixe seja, a um tempo, símbolo poético e símbolo profético: é que ele nada nas funduras do tempo, onde a eternidade gera os seus milagres."
(Trecho extraído de: SOBRE O TEMPO E A ETERNAIDADE, RUBEM ALVES)