domingo, 13 de setembro de 2009

Recordo-me de tudo iniciar-se numa tarde ociosa na Esquina.
Meus olhos abriam e fechavam pesados. O corpo langoroso, não emitia movimento algum. O único movimento existente era sentido em meu interior, onde sangue e coração exerciam seus respectivos trabalhos.
Viram a esquina duas figuras: uma cigana e um anão. A primeira, alta, morena, com longos cabelos da cor do ébano e grandes olhos azuis. Trajava um longo vestido vermelho e um xale verde. Não carregava jóia, mas um singelo pandeiro.
O anão com roupas de feitio simples, calçava uma bota de tecido e trazia consigo um bandolim.
Passaram por mim e pararam. Olharam entre si. O anão pegou seu bandolim e passou a executar uma graciosa canção, logo seguido pelo pandeiro. Retornaram sua caminhada, agora tocando. Despertada de meu ócio, levantei-me e meus pés como por encanto, passaram a dançar. A cigana virou e sorriu. Chegou-se a mim e juntas, caminhávamos e dançávamos.
Chegamos frente a um campo repleto de trigo. Meus olhos extasiaram-se com o dourado emanado pela plantação.
- Descalça teus pés! - ordenou o anão.
Obedeci.
Adentramos.
Meus pés revolviam a terra macia. E quando retomamos a caminhada os trigos começaram a balançar e emitir uma música suave. Conforme passávamos, inclinavam-se em gesto de reverência.
Quando passamos toda a plantação deparamos com duas cachoeiras. De uma jorrava água e de outra fogo.
Muitos animais as circundavam. Esquilos, raposas, castores, leões, tigres, camelos, elefantes, pássaros - e aqui leitor, adicione de sua imaginação quantos animais quiser. Eu observei estes.
Todos se prostraram em reverência.
Caminhamos até uma caverna entre as duas cachoeiras. Ali havia um vento forte e incessante e meus pés sentiam a textura de uma terra extremamente macia e quente, mas não queimava.
Deparamos com uma grande pedra. Nessa pedra havia uma fenda onde notei algo escorrendo.
- Prove! - disse o anão.
Aproximei-me e passei os dedos no líquido. Levei-o a boca. Era mel. Quando passou por minha garganta senti meu coração aumentar sua frequência. Meu corpo era preenchido pelo som de suas fortes batidas. Temi.
- Não temas. Seu corpo há de se acostumar.
Saímos da caverna. Os animais continuavam em seus postos.
- Nessa tarde iremos recebê-la entre nós.
Ele olhou para a cigana e continuou:
- Já sabes o que deves fazer.
Fui conduzida pela cigana a um estábulo. Ali estavam três cavalos: um branco, um negro e outro castanho. Todos vistosos e lustrosos.
- Escolheis um.
- Não o sei como fazer.
- Passarás a noite com eles. Quando amanhecer deverás ter escolhido um.
Retirou-se.
Sentei-me sobre o feno. Um pequeno lampião nos iluminava. O cavalo negro se aproximou e disse:
- Se me escolherdes não irá arrepender-te. Sou forte como um touro e valente como um leão.
Logo após chegou o branco.
- Não escutes o negro. Ele esquece que além de força e valentia faz-se necessário a inteligência. E isso só eu possuo. Se me escolherdes não irá arrepender-te.
O castanho não se aproximou. Apenas mantinha seus olhos fixos em mim.
Deitei-me sobre o feno e não percebi quando meus olhos se fecharam.
Acordei no meio da noite sentindo o ar gélido invadir o estábulo. Meus dentes tremiam. O cavalo castanho se aproximou.
- Peço licença. - deitou e encostou-se em mim.
Aos poucos seu corpo quente me aqueceu e voltei a dormir.
Quando senti os primeiros raios de sol invadir as tábuas do estábulo, abri meus olhos. Ao meu lado havia uma maçã.
- Espero que gostes de maçã - disse o cavalo.
Sorri e dei uma dentada na suculenta maçã.
A cigana entrou.
- Já escolhestes?
- Sim. O castanho será meu companheiro.
- Como quiserdes.
Saímos do estábulo. Todos nos esperavam.
- Entenderás sua missão no caminho. Estaremos esperando-os. Leve consigo essa pequena adaga e essa garrafa de vinho.
Agradeci e retirei-me caminhando ao lado do cavalo.
Ele me conduziu. Diante de nós surgiu um vasto campo e muitas montanhas ao fundo. O sol brilhava e o céu era límpido de um azul vivo.
Paramos frente a um lago. As águas começaram a agitar-se.
- Suba em mim. Aconteça o que for não solte de minha crina.
Quando sua pata encostou-se às águas do lago estas aumentaram seu movimento. Começaram a levantar ondas que nos encobriam. Minhas mãos suavam e eu sentia seu corpo tremer. O barulho era ensurdecedor e tudo parecia girar. O agito multiplicou-se. Ele continuava caminhando bravamente.
De súbito a água esquentou. Muito. Lágrimas começaram a escorrer de seus olhos. Mas continuava bravamente. Aos poucos a temperatura foi decaindo. Decaiu. Decaiu. Congelou.
Impossibilitado de continuar ele estagnou. Tentava forçar as patas, mas estas se encontravam imóveis.
Queria ajudá-lo e não sabia como. Fechei meus olhos. Respirei fundo. Lembrei-me do vinho. Abri a garrafa e derramei o líquido sobre o gelo. No mesmo instante o gelo derreteu e o lago ficou como antes. Tranquilo.
Ele levantou-se e de júbilo relinchou.
Saímos do lago e seguimos nossa caminhada.
Deparamo-nos com um bosque. Um bosque de espinhos. Grossas árvores cobertas por espinhos.
Aquilo machucava. Feria. Rasgava nossa pele. O sangue escorria, misturado com o suor do sofrimento.
- Não solte de minha crina.
- Não soltarei.
- Confia em mim?
- Com minha vida!
- Então feche os olhos.
Fechei.
Seu corpo abaixou-se. Senti passar sobre nós algo grande e frio. Arrepiei-me. Um calafrio me dominou.
Passou.
Quando levantou perguntei:
- Porque paramos?
- Não era tempo de continuar. Observe.
Quando levantei meu olhar, notei que três serpentes deslizavam ao longe.
O bosque havia chegado ao fim.
Quando saímos, seu corpo tombou.
Assustada, inclinei-me sobre ele e notei seus olhos se fecharem. Coloquei meu ouvido sobre seu corpo. O coração havia parado.
Comecei a chorar. Sentia-me sozinha. Perdida.
Algo se aproximou. Era o cavalo negro.
- Vem comigo. Sou forte e valente.
- Retira-te daqui. Não te escolhi eu. Aparta-te.
Levantei-me, cansada e machucada. Precisava fazer algo. Notei que próximo a nós havia uma pequena fonte de água cristalina. Caminhei até ela e com as mãos em concha comecei a trazer água e limpar seus ferimentos.
Limpei todo o sangue e suor. Quando terminei a fonte secou.
O véu da noite estendeu-se sobre nós.
Percebi que sua respiração voltou. Mas seus olhos não abriram. Exultante o observava.
Seu corpo começou a tremer. Percebi que estava frio. No entanto me encontrava quente. Encostei-me a ele e nossa temperatura igualou-se.
Quando o sol completou seu ciclo e reapareceu, ele encontrava-se em pé.
- Podemos continuar.
O campo estendia-se a nossa frente. Avistamos ao longe um carvalho. Aproximamos.
- Chegou o momento final - notificou-nos o carvalho - No entanto, apenas um poderá continuar. Escolham qual irá retornar e com a adaga que trouxestes retirará a vida do qual decidir aqui permanecer.
- Mata-me! Já a ajudei chegar ao fim e já vivi por muito tempo. Não necessito viver mais.
- Nunca! Como matarei um ser que tanto me ajudou? Retira senão a minha vida e retorna para seu povo.
Ele fechou seus olhos e aproximou sua cabeça a minha. Senti que precisava fechar os meus também. E assim fiz.
Naquele momento comecei a ouvir seus pensamentos.
"Como saberemos se o carvalho nos diz a verdade? Porque haveríamos de tirar a vida do outro se iniciamos juntos essa jornada?"
Naquele momento entendi o que precisava fazer.
Segurei minha adaga e num impulso feri o tronco do carvalho. Ele tombou.
As cachoeiras surgiram novamente.
A cigana.
O anão.
Os animais.
- Bravo! Bravo!
- Já podes tornar-se integrante de nosso Reino. - disse a cigana. Ela me guiou até a cachoeira de fogo e disse:
- Adentra-te.
Emergi meus pés e fui caminhando até emergir totalmente e o fogo cobrir minha cabeça. Sentia meu corpo queimar, porém sem me ferir.
- Volta-te e faz o mesmo na água.
Assim o fiz.
Quando saí, o anão caminhou até eu e o cavalo com uma corda nas mãos. Abaixou-se e amarrou-a em sua pata e depois em meu tornozelo.
- Serão eternamente únicos. Você dele. E ele seu. Ambos um.
A cigana agitou seu pandeiro. O anão dedilhou seu bandolim e retomaram a música que me conduziu aquele lugar.
Todos travaram uma bela dança.
Percebi que a corda havia desaparecido. E o cavalo também. Mas sentia sua presença dentro de mim.
Era momento de retirar-se.
Com lágrimas na face parti por entre o campo dourado carregando o significado daquela missão.
Calcei meus sapatos.
E o sol se pôs na Esquina.

3 comentários:

  1. Como já disse: "Um dos senão o melhor de todos"!
    Gostei das palavras, como você as colocou nas frases, os sentidos, as metáforas... Significou muito para mim este texto, já que eu o vivenciei! Lindo Vi, continue sempre assim, ou melhor, não, a cada dia melhorando mais e mais: Sempre podemos melhorar! Parabéns.

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  2. Gostei muito Viviane.
    Senti algo de espiritual nesse texto...
    Realmente na vida temos q fazer escolhas..
    beijo grande.

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